Da solidão à surpresa do amor

Conto gay baseado em um amigo meu, mas a história é totalmente fictícia. O andrógino é aquele(a) que tem características visuais e, em aditivo, as comportamentais de ambos os sexos, como por exemplo, um homem pintar unhas, usar salto, etc.

O amor não tem gênero.

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Absorto em seus pensamentos, Guilherme não sabia dizer se o que tinha era solidão, carência ou os dois. Talvez porque a solidão alimentava a carência e esta o mostrava que estava sozinho, que não havia ninguém para lhe preencher completamente certas lacunas em sua vida que só um amor conseguiria aos 16 anos. Sozinho sentado numa mesa da praça de alimentação de um shopping, não estava nem esperava ali por ninguém. Em meio aos seus devaneios, alguém se aproximou.

- Olá... Posso me sentar com você? O shopping está tão cheio, as mesas ocupadas e você aqui sozinho... Posso?

Disse isso com um gracioso sorriso que lhe inundava a face. Era um cara indiscutivelmente bonito, de olhos azuis cintilantes, cabelos curtos e castanhos, com uma barba ralinha, corpo atlético, alto e aparentava ter uns 20 anos. Vestia uma camiseta gola v, uma calça jeans e tênis, que lhe caiam muito bem.

Guilherme em meio aos seus pensamentos perdidos, não havia reparado na aproximação daquele cara extremamente atraente. Sem pestanejar, limitou-se a dizer:

- Claro... Fique à vontade.

Ele se sentou e acomodou sua bolsa Hugo Boss em uma cadeira, onde Guilherme viu que ele não era um cara só bonito, mas provavelmente rico. O cara o fitou em silêncio por alguns segundos e simpaticamente disse:

- Obrigado. Bom, melhor eu me apresentar, né? Me chamo Álvaro.

Guilherme sorriu por dentro. Álvaro era o nome que idealizava para o seu futuro namorado. Será que seria este belo homem que estava na sua frente? Não, não era possível. O destino estaria sendo bom demais com ele para ser verdade. Pensou em perguntar se ele estava brincando, se aquele era o nome de verdade dele, mas viu que seria uma pergunta idiota e preferiu não demonstrar nada quanto ao efeito que esse nome lhe causava.

- Álvaro? Belo nome. Me chamo Guilherme...

Álvaro sorriu ligeiramente e com um olhar significativo, perguntou:

- O que faz aqui sozinho? Shopping só é bom quando estamos acompanhados.

Essa pergunta pegou Guilherme de surpresa. Nem ele mesmo sabia por que estava sozinho, sendo que poderia estar com algum de seus amigos.

- Ah, não sei. Às vezes venho ao shopping só. Está quase virando um costume. Mas você também está aqui sozinho...

- É, mas não gosto. Não gosto de sair sozinho. Eu gosto de gente, de ter contato, de conversar. Acho que quando a gente acostuma a ficar só algo está errado.

- Como assim?

- Quem gosta de ficar sozinho o tempo todo? Sei lá, acho que quando a gente se acostuma com isso, perdemos a vontade de nos relacionar com pessoas novas. É claro que existem momentos que precisamos ficar só, para refletir e tudo mais. Mas quando essa necessidade de ficar só é maior do que a necessidade de estar com pessoas acho que vira um problema.

- Eu já me acostumei porque sou filho único, então sempre me pego só às vezes em casa. Mas você tem irmãos pelo menos?

- Tenho dois irmãos incríveis. Mas eu não moro mais com a minha irmã, só com o meu irmão. Ela foi estudar moda fora do país.

- Estudar moda fora do país? Que chique. É o meu sonho. Para onde ela foi?

- Paris. Faz uns três anos já. Hum, então quer dizer que você também gosta de moda, né? É, pensando bem, moda combina com você. Parece ter jeito para essas coisas... – disse sorrindo.

- Ah, é? Por quê? – perguntou meio sem jeito.

- O seu visual mostra que você se preocupa com o que está vestindo, parece antenado. Se você gosta e entende mesmo de moda, vai fundo nisso.

Álvaro reparou no estilo de Guilherme. Estava com uma calça jeans escura, camiseta e uma jaqueta preta, caindo harmoniosamente bem nele.

- É o que eu quero. Sei que tenho tudo para me dar bem nesse meio. Mas é uma possibilidade, porque pretendo fazer arquitetura por garantia. Gosto do curso.

Álvaro entusiasmou-se com essas últimas palavras e abriu um sorriso enorme e espontâneo no mesmo momento, dizendo numa explosão de alegria:

- Eu faço arquitetura!

Disse isso tão alto que algumas pessoas olharam para a cara dele. Ele então falou baixinho, com uma falsa vergonha:

- Ah, desculpa. Me empolguei...

- Claro. Agora você pode ficar satisfeito, acho que o shopping inteiro sabe que você será arquiteto.

Os dois riram alto. Estavam se dando tão bem, a conversa fluía de uma forma tão natural, que parecia que se conheciam há muito tempo. Não tinha como não se sentir a vontade com Álvaro. Esbanjava simpatia, beleza, naturalidade e carisma. Sorria fácil. E Guilherme tentava esconder o seu encanto por ele, que só aumentava.

O tempo passava e os dois conversavam desde arquitetura até moda, de culinária até livros. Pareciam naquele momento concentrar o máximo de assuntos possíveis, como se tivessem apenas aquela oportunidade. Conversaram por horas. Através disso, Guilherme viu que Álvaro não era só um cara bonito, mas muito inteligente. Fazia arquitetura, tocava piano e violão, falava três línguas, jogava tênis, morava na zona sul e era descendente de italiano. Seu encantamento por ele estava se tornando tão intenso que talvez lhe cegasse os defeitos que Álvaro possuía e que por isso ainda não havia encontrado nenhum. Em um momento, grudou seus olhos nele e o fitou em silêncio, olhando fixamente, como quem admira uma bela obra de arte.

- Por que você está me olhando assim? – perguntou Álvaro, que parecia um pouco envergonhado com aqueles olhos a espreitá-lo daquela maneira.

- Ah – disse ele, que estava se perdendo na beleza dele – Seus olhos... são tão azuis.

Na verdade, Guilherme queria ter dito para Álvaro que ele era o homem mais bonito e incrível que já havia conhecido, que sua beleza o hipnotizava e por isso não desgrudava os olhos dele e não ter feito um comentário bobo sobre os olhos dele. Porém, sabia que esse seria um comentário que o assustaria e poderia afastá-lo, colocar tudo a perder, porque até aquele momento, Álvaro não havia demonstrado nenhum sinal de ser gay nem feito algum comentário sobre isso. Era diferente de todos os homens que já conhecera. Aquele que estava ali na sua frente interessava-se genuinamente pela sua vida sem demonstrar segundas intenções até o momento. Não estava ali, lhe fazendo companhia, por puro interesse físico e sexual. Guilherme não sabia se isso era bom ou ruim, mas sabia que em algum momento ele teria que fazer alguma coisa, se Álvaro não o fizesse. Algumas oportunidades são únicas.

- São tão azuis a ponto de te hipnotizar? – disse ele, escondendo um sorriso.

- Eu me distraio fácil e seus olhos ajudaram muito...

- O olhar é uma forma poderosa de se expressar, não acha? – aproximou seu rosto de Guilherme, exalando seu hálito agradável e fixando o olhar nele.

- Você vai me distrair de novo. – disse perdidamente, sentindo a tentação cada vez mais próxima dele.

De repente, Álvaro se afastou e pegou sua bolsa. De lá retirou o seu notebook. Guilherme ficou decepcionado. Ele esteve tão próximo de seus lábios e não fez nada.

- Quero te mostrar umas coisas que tenho aqui. Vem, chega mais perto pra você poder ver.

Aproveitando a deixa, Guilherme se aproximou o máximo que podia. Agora sentia em seu nariz o cheiro agradável e envolvente do perfume que Álvaro usava. Seria difícil resistir, não fazer nada.

- O que você tem para me mostrar?

- Umas fotos e uns trabalhos meus da faculdade. São incríveis. Você vai gostar!

- Que ótimo então. Quero ver! – disse isso e mexeu nos cabelos, um tique que tinha às vezes ao falar, mostrando bem suas unhas enormes e coloridas.

- Suas unhas são lindas. – disse repentinamente Álvaro, sorrindo gentilmente e num tom muito sincero.

- Ah, obrigado... Nunca um homem elogiou minhas unhas. – agradecia extremamente sem jeito, pois aquele comentário lhe pegara de surpresa.

- Eu sempre elogio o que é bonito. Agora vem cá, olha aqui essas fotos de um projeto meu que eu fiz esse semestre...

Sem saber como, Guilherme foi impelido por um forte desejo de tocar Álvaro, um desejo incontrolável, que o estava deixando louco. Ele estava praticamente encostado nele, mas isso não parecia suficiente para saciar seu desejo. Munido de um despeito e de uma vontade de arriscar, pegou na coxa de Álvaro delicadamente, com grande leveza e suavidade. Ele parou de falar sobre seu projeto e o fitou com uns olhos insondáveis. Guilherme pensou: “Agora eu vou levar um fora para deixar de ser besta”, mas não retirou a mão da coxa dele. Não conseguia e não queria. Álvaro limitara-se a colocar sua mão esquerda sobre a mão de Guilherme e segurá-la por debaixo da mesa, acariciando-a levemente. E continuou a falar sobre seus projetos, fotos de viagens e da família, enquanto segurava a mão de Guilherme. Este mal acreditava no que estava acontecendo, não acreditava que estava ali, naquele momento, sentindo em sua pele a mão forte e grande de Álvaro.

- Eu gostei da tua delicadeza, sabia? – cochichou Álvaro de repente, com sua bela voz no ouvido de Guilherme, que sentiu seu corpo estremecer.

- E eu gostei de tudo em você. - disse, brotando um sorriso sincero e abobalhado de sua face.

- Ah, é? Tudo? Vou me sentir um cara perfeito agora! – respondeu, brincando.

- Mas você parece perfeito... Pra mim.

- Talvez eu nem seja.

- Tenho quase certeza que é. – disse, sorrindo maliciosamente para Álvaro. – Nossa, tem algumas pessoas nos encarando por aqui... - disse Guilherme, um pouco preocupado, olhando para os lados. Havia algumas pessoas os observando com estranheza e certo preconceito.

- E daí? Você se importa? – respondeu ele, sem nem ao menos olhar para o lado para ver quem os encarava.

- Sinceramente? Não... - disse, ficando cada vez mais próximo de Álvaro.

- Sabe, eu ainda não dei motivo suficiente para as pessoas estarem olhando pra cá. Mas agora vou dar...

Álvaro beijou Guilherme ardentemente. E naquele instante a carência encontrou o aconchego, a solidão encontrou a companhia. E o peito doeu de felicidade, onde o toque, a sensação e o encontro fizeram com que seus beijos se enchessem de alegria, como se qualquer movimento e sentimento fosse o primeiro, como se nunca tivessem vivido nada parecido antes.

E naquele shopping lotado, naquela multidão, toda a vida fez sentido, naquele envolvimento forte e caloroso, eles se curtiam, como se não existissem mais ninguém ao redor deles. De lá foram, de mãos dadas, até o carro de Álvaro, onde Guilherme entregou-se naqueles braços de amansar desejos, naquela boca de beijo, corpo de tocar, que fazia seu coração tonto e louco querendo sair de si, com aqueles olhos de gato flechando seus zelos. Álvaro tinha pegada.

E durante os dias que se passaram, com a distância e a falta de tempo que os consumia, houve troca de SMS durante o dia; houve toque especial pro outro e caretinha no nome na agenda do celular; houve ligações na madrugada; houve conversas no MSN; houve música cantada via web cam; houve pensamentos perdidos no outro e houve muita saudade, muita saudade. E houve também uma surpresa.

Um dia no meio da biblioteca de sua escola, Guilherme encontrando-se sozinho sentado em uma das mesas, duas mãos lhe tocaram e taparam os olhos. Reconheceu aquele perfume na hora. Era Álvaro. Guilherme, surpreso com aquela visita inesperada, não sabia se o abraçava, se gritava, se o beijava ou se beliscava a si mesmo para ver se era verdade. Mas Álvaro mal lhe deu tempo de pensar e escolher, pois em poucos segundos estava sendo envolvido em um abraço do tamanho do mundo, onde ele sussurrava em seu ouvido que estava com saudades. Nem perceberam que todas as pessoas da biblioteca estavam olhando fixamente para eles, tentando entender o que estava acontecendo e quem era aquele deus grego que se encontrava ali, vestido de polo preta, jeans , tênis e abraçando Guilherme.

- Como você chegou aqui?

- Segredo. – E Álvaro piscou disfarçadamente para uma menina que adentrava a biblioteca naquele momento. Era Fernanda, melhor amiga de Guilherme. Ele percebeu a piscadela.

- Ah, já entendi tudo. Nem preciso apresentá-lo a você pelo jeito, né, Fernanda? – disse, olhando meio enciumado para ela.

- Não mesmo. – respondeu Fernanda, dando risada e em seguida cumprimentou Álvaro. – Amigo, não vai apresentá-lo às pessoas?

O momento que tanto sonhava iria se realizar. Quantas vezes Guilherme não se imaginou apresentando para todos o seu belo namorado Álvaro que tanto idealizava? Nunca acreditou que isso aconteceria tão cedo. Era bom demais para ser verdade. Mas ele, Álvaro, estava ali, pertinho dele, com um sorriso estampado no rosto e os olhos fixos nele. Mas afinal, ele era seu namorado? Não haviam falado em nenhum momento sobre namoro ou algo mais sério, estavam deixando as coisas fluírem, sem tentativas de definir o que estava acontecendo com eles. Namorado ou não, Guilherme precisava apresentá-lo, pois a cara de interrogação e surpresa das pessoas conhecidas e dos amigos só aumentava. Aproximou-se de Álvaro, que o segurou pela cintura e disse:

- Então, gente, esse aqui é o Álvaro, meu... – e parou para refletir sobre o que sucederia a palavra meu.

- Namorado. – completou Álvaro, na maior naturalidade e com um grande sorriso na face.

- Quê? Namorado? Desde quando? – surpreendeu-se Guilherme, que estava digerindo aquela palavra lentamente.

- Desde agora, ao menos que você não queira. – disse, dando um beijo no rosto dele.

E naquele instante Guilherme não se conteve. Pegou Álvaro e o beijou apaixonadamente em meio a uma biblioteca lotada, com todos olhando para os dois, chocados com aquela manifestação de amor tão forte num ambiente como aquele. Guilherme não se importava. Álvaro era seu namorado. NAMORADO. Uma alegria e uma emoção explodiu de dentro dele. Ele que sempre foi tão sozinho, nunca teve um namorado e que as pessoas diziam que não teria um tão cedo devido a sua personalidade difícil de lidar tinha agora um namorado maravilhoso, que toda mulher se mataria para ter e que era dele naquele momento em diante. E ele sabia que era recíproco. Sabia que Álvaro estava ali porque também gostava dele, porque queria estar perto dele, porque queria, principalmente, amá-lo.

E Álvaro foi apresentado para todos, cumprimentando e conversando com seu gracioso sorriso no rosto e Guilherme ao lado, explodindo e radiante de felicidade, rindo à toa, exibindo aquele que era o seu tão sonhado namorado. E teve gente boquiaberta, gente com inveja, gente que deu em cima dele, gente que achou que era mentira e gente que ficou feliz por causa da felicidade dos dois. E teve Guilherme brigando enciumado com Álvaro porque ele elogiou a beleza de uma menina que Guilherme detestava, e Álvaro o pegou nos braços e saiu correndo para fazê-lo calar a boca; teve amassos no segundo andar da escola e os dois fugindo dos vigilantes, entrando numa sala e rindo grande com aquilo tudo; teve aquela troca de olhares, naquela timidez inerente e um “eu te amo” sussurrado no ouvido; teve beijo roubado em meio a palavras; teve cafuné gostoso na cabeça e um silêncio onde só se ouvia os corações. E teve Álvaro brotando com um presente para Guilherme, que ao abrir viu que era um esmalte da Chanel e ficou louco com a surpresa, com aquele pequeno luxo de presente, saindo correndo de mãos dadas com ele para mostrar para todo mundo e Álvaro ficando com vergonha daquele escândalo todo por causa de um esmalte.

E teve uma fuga dos dois da escola para o cinema, onde um não deixou o outro ver o filme, a pipoca caiu no chão, a coca derramou na roupa e eles deram tanta risada que receberam olhares fulminantes de todos os presentes na sala. E teve compras no shopping, onde Álvaro experimentou e comprou ternos, com as vendedoras de olho nele e Guilherme enchendo a boca dizendo “amor” para cortar as asinhas delas. E teve Álvaro esperando sentado numa loja, vendo Guilherme, no ápice de seus momentos andróginos, experimentar mais de 10 saltos em meia hora e levando mais meia hora para decidir quais iria levar e ele tendo que opinar sobre tudo, da cor até a meia pata. E teve Álvaro carregado de sacolas, onde apenas uma era dele e o resto de Guilherme, que adentrava uma loja a cada dez passos e Álvaro suspirava resignado, perguntando “Mais uma?”. E teve Guilherme entrando em outra loja de sapatos, onde Álvaro não aguentou quando o viu de olho em mais um salto e disse:

- Guilherme, você comprou um sapato exatamente igual a esse na outra loja.

- Não comprei, não. Aquele lá tinha 12 cm, esse tem 17. É bem diferente.

Álvaro suspirou longamente.

- Mas amor, você já tem saltos demais, você comprou três agora há pouco...

- E daí? Eu preciso desse também, amor. – e virando para a vendedora mais próxima – Moça, me traz esse aqui para experimentar , por favor?

E Álvaro deixou seu corpo cair no estofado da loja, resignado e viu que tentar domar o consumismo de Guilherme era uma batalha perdida. Lembrou-se de não carregar mais o cartão de crédito quando resolvesse sair para um shopping com ele de novo.

E dali foram embora. Álvaro com o dobro de sacolas, carregando coisas quase na cabeça e Guilherme dizendo que não havia comprado o suficiente. E teve Guilherme preocupado em explicar para sua família como teve dinheiro para tantas compras e Álvaro dizendo: “Fala que você recebeu um dia de princesa!”, dando uma risada estrondosa de dentro do carro e Guilherme falando: “Não tem graça!”. E teve música no carro, de romântica à agitada, teve os dois cantando juntos, teve Álvaro cantando “Ne Me Quitte Pas” com um biquinho estilo francês irresistível e Guilherme se derretendo. E teve despedida cheia de chamegos, de provocações e de sorrisos.

Dali em diante, um era o motivo do outro de acordar sorrindo; qualquer problema que surgia era para Álvaro que Guilherme ligava, pois sabia que ele iria entendê-lo, mesmo sem falar nada e não ia julgá-lo, seja lá o que for. Qualquer dorzinha que surgia, Guilherme reclamava e Álvaro brigava com ele, dizendo que ele não se cuidava direito. E Álvaro perguntava quem eram todos os amigos dele, mas não louco de ciúmes, mas sim porque se interessava pela vida dele e sabia que estando perto deles, estaria cada vez mais perto de Guilherme também. E não foi tudo a mil maravilhas e eles nem queriam que fosse, porque um queria lutar, corrigir, conquistar e perdoar o outro a todo o momento. Teve brigas, ciúmes, raiva, mas tudo acabava em conciliações para lá de fogosas. Descobriram-se em belas tardes de sábados e domingos muito iguais em algumas coisas e completamente diferentes em outras. E Guilherme gostava de acompanhar Álvaro em festas, de ver filmes intelectuais junto com ele, de ouvi-lo falar minunciosamente e por horas a fio de um novo projeto de arquitetura, de vê-lo tocar instrumentos, de vê-lo cantar, de vê-lo sorrir de forma única pra ele, de vê-lo de terno e perguntando: “Tô bonito, amor?”. A cada dia se apaixonava mais por ele. E Álvaro também gostava de ficar com ele, de vê-lo se desmontar em sorrisos e dengos quando estava perto, gostava de ensiná-lo a tocar piano, mesmo que fosse a coisa mais desgastante e que lhe exigia a maior paciência do mundo; gostava de seus ataques e exageros por causa de uma unha quebrada, pois o fazia dar risada; gostava quando ele colocava um salto e o provocava, gostava de levá-lo até a sua casa e passar a tarde inteira sem fazer nada, a não ser curtindo a companhia um do outro e consumindo o fogo intenso daquele amor.

E teve apresentação para a família de Álvaro, com aqueles defeitos aparentes, com aquela timidez, mas com aquela vontade de mostrar com quem estava e porque estava. E teve os pais dele - que aceitavam a sua condição sexual desde os 15 anos – gostando de Guilherme e chamando para ele aparecer sempre quem quiser. E teve a irmã de Álvaro que chegou de Paris e ficou louca com aquele andrógino lindo e chique que seu irmão estava namorando. E teve uma felicidade e um amor que não parava de crescer, transformando aquilo em algo cada vez mais sólido.

E teve Guilherme se assumindo para sua família, com Álvaro ao seu lado, segurando a mão e lhe acalmando o coração, sério e pronto para socorrê-lo num momento tão difícil. E teve choque, choro, incredulidade, emoção, dificuldade, decepção. E teve Álvaro defendendo, explicando e argumentando por um longo tempo, numa sinceridade e afetuosidade sem tamanho, que as coisas do coração as pessoas não têm o poder de escolher e que eles possuíam os mesmos sentimentos, anseios e necessidades como qualquer outro ser humano. E teve aquele silêncio longo, de início de compreensão e de aceitação, que só o tempo faria ser completa.

E teve Álvaro um dia, um jantar a dois, num restaurante chique, onde ele era, sem dúvida, o homem mais bonito do lugar, vestido de um terno e gravata preta, com um ar todo pomposo e brincalhão, de quem vai fazer arte. E Guilherme, com suas unhas pintadas e de salto, vestido da sua forma mais genuinamente andrógina, a olhá-lo com certa desconfiança.

- O que você vai aprontar, hein?

- Nada. – no tom mais cínico e sem vergonha do mundo.

- Olha que eu tô de salto hein, não apronta comigo e...

Álvaro colocou seu dedo indicador nos lábios de Guilherme, dizendo “psiu” e ele se calou. Afastou o dedo, pôs a mão no bolso do paletó e retirou uma caixinha pequena, vermelha e de veludo. Segurou com firmeza na mão, olhou para Guilherme e seus olhos azuis nunca foram tão cintilantes, calorosos e poderosos.

- Foi isso que eu aprontei. – e sorriu graciosamente, colocando a caixinha suavemente na mão de Guilherme.

Guilherme tremia e seu coração parecia que ia sair pela boca. Ele sabia o que deveria ter naquela caixinha e se recusava a acreditar. Antes de abrir, disse começando a ficar emocionado:

- Ah, eu não acredito...

Abriu. Era o anel mais lindo e incrível que já havia visto. De ouro, grande e chamativo. Olhou deslumbrado, com cara de criança quando recebe um presente.

- Leia o que está escrito dentro, Gui – disse Álvaro.

Leu. Lá estava escrito “Ne Me Quitte Pas¹ - Álvaro 12/08/2010”. Era o dia em que se conheceram. Escorreu uma lágrima no rosto de Guilherme.

- Posso? - disse Álvaro, gentilmente, se oferecendo para colocar o anel na mão esquerda dele.

Guilherme não respondeu. Estava tão emocionado que lhe faltavam todas as palavras. Limitou-se a estender a mão e lhe passar o anel. Álvaro colocou delicadamente no anelar da mão esquerda, sorriu e disse:

- Amo você.

E naquela noite estrelada, naquele restaurante chique, naquele dia que completavam um mês desde que haviam se conhecido, naquela emoção e naquela felicidade de início de um relacionamento verdadeiramente sério, os dois se beijaram. É quando se pode ter certeza de que o mundo inteiro pode acabar naquele exato instante em que duas almas se encontram e se abraçam, se reconhecendo em silêncio. Como companheiras da outra. Por opção, amor e escolha. Em voz alta. E no mesmo instante começou a tocar Ne Me Quitte Pas no restaurante.

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¹ Ne Me Quitte Pas – “Não me deixes”, em francês.

Fernanda S.

28/11/2010

Fernanda Sousa
Enviado por Fernanda Sousa em 14/12/2010
Reeditado em 16/12/2010
Código do texto: T2671674
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