Fantasmas

Fantasmas!

A linha do horizonte, de avermelhada fica negra e o sol mergulha nas profundezas da noite para ir se deitar.

O asfalto perde a sua cor, o cheiro da fumaça do óleo diesel e lonas de freio queimadas, misturam-se entre os paredões rochosos da serra.

Noventa mil quilos de peso empurram o treminhão(*) no mergulho escuro serra à baixo, somados a outro tanto em lembranças, saudades e tristezas do caminhoneiro ao volante.

O cheiro da mulher amada ainda está na cabine, a voz dela ainda esmaga-lhe a alma; misturada ao chiado dos 34 pneus que descem freando e esmagando o asfalto.

Rangem os molejos nas curvas ao lado de abismos e os faróis em sentido contrario ferem-lhe as retinas. As mãos suam no volante.

A morte, (dama das curvas), senta-se na mureta de cada uma e sorrindo lhe olha dentro dos olhos tristes; ele ajuda o freio-motor com o de pedal, sorri com o canto da boca pra ela e desvia. Já são amigos de estrada há muito tempo, nenhum dos dois tem pressa, se respeitam. Ele sabe que um dia ela lhe abraçará; ela sabe que nesse dia ele vai estar com o sorriso no canto da boca e sem se importar de estar indo; os dois sabem que tudo tem seu tempo.

Um CD com a música que a amada gosta está ligado baixinho, como sempre o faz nas horas de perigo e o perfume dela está impregnado na cabine.

Abaixo as intermitentes luzes das viaturas policiais e carro de resgate piscam iluminando os homens de vermelho que trabalham no primeiro acidente fatal da noite.

Pelo PX(**), chega a noticia que era um amigo, (a dama das curvas o pegou há 2.500km de casa). Passa devagar; num olhar rápido lhe dá o ultimo adeus; a serra não permite estacionar. Mais uma oração silenciosa num coração que já não crê em nada.

Aumenta o som; e novamente o sorriso da amada misturado ao barulho do freio-motor, traz seu perfume pra cabine de luz azulada. Na cama ao lado, vê-lhe os contornos do corpo nu, deitado; acaricia o lençol e nele sente-lhe a maciez do corpo; traz ao peito o travesseiro e apertando sente-lhe os seios esmagando o peito. Respira fundo, devolve o travesseiro, solta o freio de pedal, a serra esta acabando, mais duas curvas e desliga também o freio-motor...

Noventa mil quilos, que transformam-se em meio milhão, se calculados em impacto, brincam agora com a lei da gravidade; sobre trinta e quatro pneus que chiam na escuridão da serra que termina.

No chapadão, a mão direita trabalha o cambio, um leve aperto no acelerador e ouve o motor respondendo ao chamado; o cavalo de aço negro, se eleva sobe o eixo dianteiro e como um puro sangue de cabeça erguida e rédeas soltas, rasga a noite.

Agora ela esta sentada na poltrona do carona, suas pernas sobre o painel , as mãos cruzadas atrás da cabeça, os olhos brilhantes como os dentes que sorriem, iluminam a cabine.

Desliza a mão no volante contornando-lhe o corpo, desliga o condicionador de ar, abre a janela, deixa o vento frio da chuva que se inicia, beijar-lhe o rosto.

Um carro de luxo passa por ele, da mesma marca , do mesmo modelo daquele que lhe disseram que um dia a levou da sua vida.

Esmaga o acelerador e o motor ruge, respondendo com a mesma raiva.

O cavalo negro corre engolindo asfalto pelo tempo que duram as lembranças; o mesmo tempo que a chuva misturou-se às lagrimas. Todos sem noção, todos sofrendo a mesma dor pelo mesmo motivo, na mesma estrada, por mais uma etapa de viagem . Só quando a dor da canseira vence a dor da alma é que param num posto de beira de estrada.

Já é tarde; um banho, uma refeição ruim e ligeira e ele volta a cabine; com os olhos tão vazios quanto seu mundo. Vê colegas dividirem “a nóia”***; ri triste, lembrando as reportagens que ainda falam no velho e ultrapassado “arrebite”****. É; é hora de dormir; a dama das curvas dessa hora em diante terá muito trabalho levando “noiados”.

Passa pela prostituta que sem necessidade de palavras o segue, (já é seu cliente a muito tempo), e entra com ele na cabine. Ela fecha as cortinas e enquanto ele se despe, com a calma dos casais que há muito convivem; ela escolhe no radio o tipo de musica que ele gosta de ouvir enquanto dorme.

Sem tirar a roupa ela deita-se ao seu lado e acaricia-lhe os cabelos. Fala do filho maior que não quer mais estudar, do mais novo que quebrou o braço caindo do pé de manga do vizinho; fala do dono do mercado que bateu na mulher e foi preso; fala do açougueiro que tentou lhe enganar na compra de carne.

Ela fala sem esperar resposta ou que ele emita opinião. Nem mesmo espera que ele a ouça; vai falando de seus problemas, suas dores, suas ilusões e automaticamente fala cada vez um tom mais baixo, até perceber que ele já dorme há muito. Aí, cuidadosamente lhe cobre o corpo, retoca o batom, penteia os cabelos, regula o climatizador de ar da cabine e sai trancando a porta devagarzinho.

Sai poderosa; afinal, apenas falando, ela sempre consegue expulsar a bandida da cabine e fazer ele dormir e por um pouco de tempo ficar livre de lembranças.

Sai sorrindo pra chuva fina da noite.

Vai caminhar pelo pátio do posto de combustível.

Vai ser amante para os afoitos.

Vai ser mãe para os mais novos; assustados com as mortes que viram na estrada durante o dia.

Vai ser enfermeira de almas, para os que estão precisando de psicóloga!

Vai ser mulher de caminhoneiro; e sua noite de trabalho está só começando.

Antes das 4:00 da manhã ela já caminha pelo pátio sob chuva fina que persiste, acordando todos seus clientes. Bate suavemente na cabine de cada um, a cada um chama pelo nome, a cada um tem uma frase diferente de bom dia. É hora de partirem e no primeiro ônibus que passará às 4:00 e ela tem que voltar pra preparar os filhos pra escola.

Ele lhe paga o, “pingado” e o pão de queijo na lanchonete que já abriu; comem juntos, mergulhados em seus mundos e dores pessoais...

Pouco falam

Se entendem.

Se conhecem; o olhar diz o necessário.

Ela não precisa perguntar-lhe quando volta, pois ele nem mesmo sabe se voltará.

A dama das curvas é que o sabe , mas não fala.

Não precisa pedir-lhe que se cuide; ele é estradeiro velho, já não se assusta e nem descuida e nem se importa!

Ele não precisa perguntar nada; sabe que ela estará aí, se, e quando ele voltar.

Lhe entrega dobrado, o equivalente ao que ela cobraria por dez noites de amor, que ela nem olha, ao guardar na bolsa barata e molhada da chuva fina da noite.

“Compre umas roupas pros meninos”!

Ela morreria por ele, lhe seria escrava; nem os vinte de praxe cobraria e os dois sabem disso, da mesma forma que ele sabe que ela jamais esquece de pedir por ele em suas orações, debalde seus problemas sejam muito maiores.

Do ponto de ônibus ela observa o cavalo negro acender os faróis e com eles olhar pra estrada; ouve a descarga de ar liberando o freio estacionário e vê o treminhão se arrastar pesadamente para a correnteza da pista.

Ouve o motor rugir potente e a turbina cantar a cada mudança de marcha e logo as luzes traseiras somem na enxurrada de veículos que já trafegam.

Encolhida sob o frio abrigo do ponto de ônibus ela sabe que a bandida já está lá dentro novamente, se espreguiçando na cama que ainda tem o cheiro dele e que irá com ele a viagem toda e em todas as viagens.

Só lhe dará paz quando a dama das curvas o tomar dela, libertando-o, para dirigir nas estrada eternas.

Sabe que pra ele, a presença ausente dela é mais pesada que a carga do “nove eixos”...

Não sabe se o verá de novo!

Ainda lembra, quando também o pai de seus filhos, saiu assim pela ultima vez.

Lembra ter levado ele até a boléia e lembra ainda o gosto do ultimo beijo!

Era verdureiro, carga de horário, uma farmácia de drogas pra espantar o sono escondidas na cabine, para poder cumprir o horário imposto pela transportadora.

A dama das curvas o pegou na BR 101 e ela nem sabe onde fica isso!

O amigo que lhe fez o favor de levar a cruz e finca-la no local, com o nome do seu amado; a dama o pegou na “Belém Brasília”.

O ônibus chega, ela embarca e segue rumo à cidade, ele já está na velocidade de viagem em rumo contrario.

Seguem; cada um com seus fantasmas!

* Treminhão (conjunto de nove eixos, o maior permitido no asfalto)!

** PX, radio amador usado por 90% dos caminhoneiros!

*** Cocaína!

**** Med. p/emagrecer, (Anfetamina), cujo efeito colateral tira o sono!

João Braga Neto.

JJ Braga Neto
Enviado por JJ Braga Neto em 16/01/2010
Código do texto: T2033790