Entre o azul e o vermelho
Logo que mudei para a capital destaquei-me por minha beleza. Não que eu não esteja sendo modesta, mas devo admitir que na minha juventude possuía uma beleza ímpar e, confesso, soube aproveitar esse fato. Participei de vários concursos e tal fato tornou-me bastante conhecida. Fui convidada a participar de um concurso em um clube muito prestigiado da capital.
Naquela época, os clubes reuniam a camada mais alta da sociedade. Seus sócios eram políticos influentes, empresários, além das grandes damas que compunham o panorama social da cidade. Assim, era o sonho de qualquer moça participar de um desses desfiles, já que lá poderia estar a porta para um futuro melhor. No início tive receio, mas como nunca fugi das possibilidades que a vida me oferecia, logo aceitei.
Os ensaios para o desfile aconteciam num teatro que ficava no centro da cidade. Eram dezessete moças, que representavam determinadas regiões. No primeiro dia de ensaio, veio uma notícia que provocou um alvoroço entre as moças: no dia do desfile o governador do Estado seria um dos jurados. Tal fato pode parecer algo normal nos dias de hoje, mas naquela época uma autoridade desse gabarito era a chance que as moças esperavam para se exibir. Muitas viam nesses eventos a oportunidade de encontrarem um amante. A figura do governador vinha de encontro a esse desejo e fazia com que as candidatas se tornassem ainda mais rivais.
A partir daí o que era para ser um prazer se tornou um horror. Fazia-se segredo para tudo: a cor do vestido, o estilo do maiô, o penteado. O que era belo tornou-se pela disputa algo medonho, pois a vaidade e a competição engoliram tudo o que aquelas moças tinham aprendido até aquele momento. Apesar de meus valores, devo admitir que também me corrompi. Não queria ser amante, ou protegida do governador, mas a simples idéia de desbancar aquelas metidas, que se vangloriavam o tempo todo, acendia em mim a faísca da disputa, que em poucos instantes se tornava uma fogueira.
No entanto, para ser a melhor, eu tinha um problema: era pobre. Minha mãe, após a morte de papai, vendeu o pouco que tinha e comprou uma casa na capital, perto de sua irmã. Era tudo que possuíamos. Alguns móveis velhos, a casa e umas as outras. Para desfilar tive que pedir o consentimento de um tio que nem me conhecia direito, mas como homem, possuía uma certa autoridade em nossa casa.
Mas como pobreza não é defeito, não desisti de participar daquele banquete de beleza indiscritível, mas de uma crueldade aterrorizante. Foi nesse meio em que conheci um dos meus melhores amigos, Chiquinho Montalvão. Eu penteava meus cabelos quando vi pelo espelho aquela figura magra e comprida. Usava roupas justas e possuía uma alegria espalhafatosa, que se expandia por todos os cantos. Ele fixou seu olhar em mim, e, pelo espelho analisou-me como um médico que observa a paciente.
- Você é bonita, mas está descuidada! – disse sentando num divã, que ficava do lado da penteadeira.
- Vim da roça – respondi com ar de ironia.
Ele conteve o riso. Levantou-se e firmou a faixa vermelha que trazia na cintura, ajustando-a. Parou atrás de mim e passou a mão em meus cabelos. Pela primeira vez um homem tocava meus cabelos, e aquilo me parecia indiferente. Olhando-me pelo espelho retrucou:
-Todos nós viemos da roça, mas isso é passado. Você agora é uma dama e deve ser tratada como tal.
Tais palavras acenderam ainda mais a ambição de ganhar o concurso. Eu era uma dama, que há muito deixara aquela jecona enterrada na roça.
Chiquinho tornou-se uma espécie de padrinho, que nos ensinava a desfilar, a andar, enfim, a se portar como damas da capital. Passou a representar o amigo que todas sonhávamos ter. Tudo corria bem até que uma notícia deixou-me preocupada: cada uma de nós teria que providenciar sua roupa de gala. Foi a partir dessa notícia que aprendi uma lição: ser dama exigia ter dinheiro, ou pelo menos alguém que custeasse as despesas. Pensei em trabalhar, mas naquela época não era como hoje. As moças preparavam-se apenas para um casamento que lhe dessem um nome, nome este que lhe daria um lugar na sociedade.
Cheguei em casa após o ensaio. Estava triste porque não conseguia ter uma idéia acerca do vestido. Deitei-me num banco que ficava na cozinha. Minha mãe lavava uns peixes que fritaria para o jantar.
- Por que esse desânimo? Saiu daqui tão animada mais cedo. – mamãe perguntava enquanto a água da torneira escorria sobre os peixes.
- Surgiu um problema. – continuei deitada sobre o banco.
- Qual? – ela perguntou, sem demonstrar muito interesse.
Contei sobre as roupas. Disse que cada uma das candidatas deveria providenciar seu vestido de gala. Ela riu, mas não disse nada. Enxugou as mãos num pano de prato. A gordura já estava estalando na panela quente.
Nesse ínterim, Chiquinho já nos havia ensinado diversas coisas. Ele todos os dias dizia que uma mulher bela, jamais deveria macular sua beleza com gestos ou palavras vulgares. Para as belas, segundo ele, bastava um sorriso. Chiquinho nos alertava de que as palavras eram as principais inimigas da beleza, e que, por essa razão, a beleza era silenciosa, inerte. Para aquele homem de costumes tão estranhos, as palavras eram pior que o tempo: enquanto o tempo desconstruía a beleza ano a ano, as palavras eram capazes de fazer desaba-la num único instante.
Faltava apenas duas semanas para o desfile. As outras candidatas comentavam sobre a prova dos vestidos, mas escondiam detalhes, a fim de que as concorrentes não invejassem. Eu escutava aquilo tudo, mas meu orgulho não deixava que eu recorresse a ninguém. Ainda não tinha um vestido, mas preferia ficar calada e fingir que tudo corria bem.
Logo que entrei em casa minha mãe pediu que a acompanhasse até o quarto:
- Filha, tenho uma surpresa para você. Feche os olhos.
Obedeci ao pedido e senti que ela tirava minhas roupas. Suas mãos estavam ásperas. Talvez esse fosse o único vestígio da vida que levávamos na fazenda. De olhos fechados, senti também que minha mãe colocava outra roupa em mim. Mas esse fato nem chamava minha atenção: na verdade estava envolvida com as mãos dela, que há muito tempo já não me afagavam. Aproveitei ao máximo aquele momento. O momento em que eu, de olhos fechados me entregava completamente para a minha mãe. Sentir a maciez do tecido e os braços dela me envolvendo, foi um evento que me transportou intimamente para a infância.
Abri os olhos e, pelo pedaço de espelho pendurado na parede, pude ver um singelo vestido azul. Era simples, mas era belo. Minha pele ficara extremamente clara e meus lábios vermelhos.
- Fiz este vestido com os restos de tecido que uma cliente me deu. – dizia isto ajeitando o vestido em meu corpo. – Gostou?
Fiz que sim com a cabeça. Estava emocionada com a sensação de proximidade.
- Sabe minha filha, eu tenho muito orgulho de você. Posso não ter dito isso antes, mas sempre percebi que você era diferente de mim. Ainda bem. Você é decidida, corajosa, virtudes que nunca fizeram parte de minha vida. Quando vim ao mundo já encontrei tudo pronto, só segui o que me ensinaram. Você não. Nunca seguiu o que lhe ensinei. Ainda bem.
Por um momento quem estava a minha frente não era mais minha mãe. Era uma mulher.
***
O dia do desfile chegou. Todas as moças ficaram o dia todo se arrumando e descansando, enquanto eu arrumava a casa, como sempre. Eu mesma fiz o penteado e Chiquinho me maquiou quando cheguei ao clube, que estava todo enfeitado de vermelho e dourado.
Quando tirei o vestido da sacola, Chiquinho se assustou. Segurou-o, e olhando riu:
-Você não pode desfilar com esse vestido. É simples demais para a ocasião.
Fiquei preocupada. Ele parou, pensou e disse:
- Fique aqui paradinha, volto dentro de uns quinze minutos. – Chiquinho pegou sua bolsa e saiu correndo.
Enquanto as meninas se aprontavam eu fiquei sentada, com o vestido azul no colo. Passados alguns minutos, Chiquinho chegou trazendo nos braços um imenso vestido vermelho:
- Desse jeito você me mata do coração criatura! Ainda bem que uma senhora amiga minha, muito chique por sinal, mora aqui perto. – dizia isso colocando o vestido em mim. – Vista-se, que vou ver como está a organização lá fora!
Chiquinho saiu do camarim. Acabei de colocar o vestido e fui para o espelho. De repente ouvi uma voz conhecida me chamando. Era minha mãe. Olhei para trás e vi aquela mulher. Percebi em meio ao dourado e vermelho que estava velha. Nunca a vira tão velha. Sua aparência contrastava com o luxo do camarim.
Ela me olhou dos pés à cabeça, talvez procurasse o azul simples de sua criação, mas encontrou a grandiosidade do vermelho. Sorriu:
- Vim lhe ver! Seu tio está lá fora me esperando! É pena não poder ficar aqui para ver você! – Mamãe me abraçou.
- Fique mãe! – Pedi.
- Tenho que ir! Boa sorte! Você está linda! – beijou minha testa e saiu.
Voltei meus olhos para o espelho. Eu estava realmente linda. Entendi porque a cor vermelha simbolizava a tentação. Por um segundo, pensei em me corromper pela beleza escarlate que pulava aos meus olhos. Mas, apesar de bela, aquela não era eu. Aquele vestido tinha uma história desconhecida para mim, enquanto o pequeno azul jogado sobre a cadeira, tinha um verdadeiro sentido. Tirei o vermelho e coloquei novamente o azul. Pensei numa das poucas manifestações de carinho de mamãe, e decidi que não poderia me desfazer disso por um concurso bobo. Chiquinho entrou no camarim olhou-me e sorriu. Fez um gesto de aprovação com a cabeça. Em silêncio puxou-me para o palco.
Aquela noite foi encantadora. Perdi, nem me lembro mais em qual colocação. Sentia-me feliz, em paz, afinal de contas, valorizei o que era certo: o que tinha um verdadeiro sentido para mim. Ao fim do desfile, um jornalista pediu para tirar uma foto minha. Mal sabia eu que à minha frente estava meu futuro marido.