Sobre homens e mulheres

Lembro-me como hoje do cheiro do café de Matilde, que rompia o sono, nos alertando para a manhã que começava. Naquela época, uma mulher dita decente não ousava ficar na cama por mais tempo que o sol. Assim que este saía dentre as colinas era nossa obrigação despertar para que louvássemos mais um dia. E assim fazíamos. Eu, era a mais preguiçosa, via minhas irmãs se vestindo e pensava com a tristeza do passarinho que não quer abandonar o calor do ninho para voar no ar frio de dias difíceis. Os dias eram difíceis naquela época. Meu pai já havia perdido grande parte do nosso patrimônio com dívidas de jogos e festas que promovia na cidade. Dessa situação nascia minha inquietação: nós as mulheres tínhamos o horário monitorado, enquanto meu pai cometia um erro atrás do outro e minha mãe fingia não se importar.

Quando meu pai chegava depois de dias desaparecido, o máximo que a minha mãe arriscava era perguntar por onde ele havia andado. Com o olhar de reprovação ele ficava calado, como quem jamais admitiria ter seu espaço invadido. Minha mãe fazia o mesmo. Esquentava a água e colocava numa bacia para que ele descansasse os pés, provavelmente doloridos pelas noitadas e danças. Matilde, que ajudava mamãe nas tarefas domésticas via aquilo e achava um absurdo. Eu sabia disso não por ter a ouvido dizer algo, mas pelo seu olhar quando via minha mãe se submeter àquelas situações.

Foi nesse ambiente que construí uma juventude quase perdida. Digo quase porque mesmo com a imposição de mamãe em manter a aparência de moça prendada. Sempre carreguei comigo a esperança da liberdade. Minhas irmãs, diferentemente de mim, passavam seus dias aprendendo a marcar e a rezar sempre seguindo os passos de mamãe. Eu, apesar de também segui-la nesses ditos compromissos, não sentia viver essa realidade. Eu era como uma espectadora que assistia àquilo. Enquanto Letícia, minha irmã mais velha, se dedicava a aprender coisas que a fizessem mais prendada, eu fingia aprender aquilo para não contrariar mamãe, que já sofria com a vida desregrada do marido.

Sempre me indaguei como minha mãe conseguia sentir por meu pai um amor tão grande. Primeiro porque desde que se casaram, nunca obteve nenhum privilégio na relação. Ao contrário, ao se unir matrimonialmente minha mãe assinava sua condenação. As terras onde vivíamos foram herdadas do meu avô materno. Meu pai, apesar de possuir alguns bens, só conheceu uma vida melhor quando o pai de mamãe morreu e ele começou a administrar seus bens.

Tal fato fazia-me ainda mais revoltada em relação ao papai. Além de herdar os bens da mamãe ainda tinha coragem de expô-la a toda sociedade local. Numa noite, enquanto jantávamos, minha mãe, por incrível que parecesse, teve um lapso de lucidez: disse para papai que não suportaria mais aquela situação. O homem, que sempre que estava em casa, ocupava a cabeceira da mesa, olhou-a com uma frieza que fez com o brilho momentâneo dela se apagasse imediatamente. Foi uma das poucas vezes que vi minha mãe reagir.

No vilarejo local, que ficava um pouco distante da fazenda, a figura de meu pai era adorada: vivia alegre nos empórios, pagava bebida aos amigos. O único que não gostava dele era o padre, que já há muito havia se cansado de suas blasfêmias. E enquanto meu pai se deleitava naquele lugar, minha mãe, Matilde e uns poucos peões que haviam sobrado cuidavam da fazenda: tiravam leite, faziam os queijos, plantava o milho, colhia-o. Tudo andava de acordo com as facilidades que a natureza proporcionava. Meu pai só aparecia para gastar o lucro arrecadado com o suor.

Foi vendo essa rotina que decidi que jamais me apaixonaria por homem nenhum. Apesar do esforço de minha mãe para que fossemos prendadas, decidi que jamais me submeteria a um papel ridículo daqueles. Preferiria a morte ao sofrimento de acordar nas madrugadas e dar banho em um homem cheirando à cana e à raparigas. Comecei então a afrontar minha mãe: acordava tarde, vestia calças, andava a cavalo. Meu pai parecia nem se importar, mas minha mãe tinha pavor àquele tipo de comportamento, já que desde criança foi criada com essa mentalidade.

Quando via minha mãe dobrar a roupa do meu pai e arrumá-la com esmero, sentia uma mistura de raiva e ternura. Ela era cuidadosa com o homem que a tanto fazia sofrer. Um dia, enquanto ela mexia um doce à beira da fornalha perguntei-lhe:

-- Mãe, a senhora ama o pai?

Ela, que quase não conversava sobre estes assuntos começou a mexer o doce mais rapidamente. Tentou disfarçar, mas vermelha respondeu:

-- Chega uma época milha filha, que amor já não é o bastante. Quero que você deixe de pensar em seu pai e em mim. Quero que pense em você, no seu futuro. Espero que você ao ver tudo o que vê nessa casa aprenda algo de bom.

Fiquei calada. Ouvi aquilo e entendi o que ela queria dizer. Percebi que já estava aprendendo o mais importante com aquela relação.

***

Era domingo de Páscoa e, como todos os anos, fomos à alvorada que acontecia na madrugada para receber o Cristo ressuscitado. Quando saímos ainda estava escuro. Pude notar a inquietação de mamãe que procurava papai com os olhos. Olhava a beira da estrada na esperança de vê-lo prostrado, mas depois de um sábado de aleluia com certeza ele só apareceria à tarde. Rezávamos quando minha mãe foi interrompida por uma comadre que lhe disse ao pé do ouvido:

-- Comadre desculpe eu lhe atrapalhar, mas o compadre ta lá na porta da igreja aprontando o maior escarcéu!

Minha mãe se levantou rapidamente. Eu fui atrás dela. Na praça uma multidão de pessoas ouvia meu pai gritar:

-- Aleluia! O Cristo ressuscitou! Espero que ele ressuscite essa cambada que vive cheirando bunda de padre!

Minha mãe, assustada tentou se aproximar, mas desistiu na medida em que ele gritava mais alto. Vi que ele estava bêbado, sujo. Gritava e dançava se equilibrando para não cair. Uns homens riam. Umas mulheres pareciam assustadas. Ninguém o tentou impedir. Olhei para mamãe que começava a chorar. Fui em direção ao bêbado. Tentei segurá-lo, mas quando ele viu que era eu quem o tentava impedir, empurrou-me. Caí sentada. Meu pai vendo-me jogada ao chão começou a chorar e se sentou. Abriu-se um círculo, no qual ficamos no centro. Entre nós mamãe. Ela olhou-me profundamente. Vi que lágrimas faziam seus olhos brilhantes com a luz do sol matutino. Pensei que ela me estenderia a mão. Ela se dirigiu ao meu pai, passou a mão na sua cabeça e segurando a sua mão o levantou. O homem, bêbado, se apoiou nela que o levou até a charrete. Enquanto andavam vi que meu pai deitou sua cabeça sobre o ombro de mamãe. Estirada no chão, vi uma felicidade discreta no rosto de mamãe, que ao sentir a cabeça do homem no seu ombro, comungava a intimidade do casal que a pouco havia sido exposta em plena praça pública. Nesse momento, compreendi que o amor não era para ser entendido.