A carta que não li
Mudança é uma coisa surpreendente. Depois de quase trinta anos morando em Belo Horizonte, cá estava eu fazendo novamente as malas e encaixotando tudo para retornar à minha cidade natal Itapema, no estado de Santa Catarina. Resolvi encaixotar tudo à noite, pois havia marcado com a transportadora para as seis horas da manhã seguinte.
Naquela tarefa de separar o que eu realmente levaria e o que deveria ser descartado, dei-me com um bauzinho de palha trançada no fundo de uma caixa no qual só guardava coisas muito antigas e que só não o havia jogado fora ainda, por ter sido presente de minha avó materna, Vovó Sinhá. O bauzinho de palha pareceu-me misterioso, senti uma vertigem ao recordar que ali dentro estavam as lembranças mais remotas do meu tempo de adolescência e juventude. Ao desatar o lacinho de palha esta se quebrou, ressequida. Levantei a tampa devagar e senti meus lábios tremerem, segurei uma lágrima, quando de cara dei com a fotografia de um grande amor deixado lá atrás no tempo. A fotografia era em preto e branco, mas ainda assim revelava um rosto muito belo. Era José de Azevedo Armando Quartel, o “José Armando”. Quanta saudade! Comecei a folhear algumas páginas do livro que escrevi na minha vida e que já estavam muito bem guardadas.
Lembrei-me do primeiro encontro. Era domingo, um dia de sol claro! Estávamos reunidas na praça (Eu e minhas amigas costumávamos a permanecer na Praça da Paz, depois da missa das 9h na minha matriz, para apreciarmos o movimento). De repente, como que de uma porta mágica, saiu aquele rapaz! Vinha sozinho caminhando na calçada em nossa direção, eu e minha amigas ficamos acesas, pois o broto era de fato belo. Não era tão novo quanto os meninos da Rua Santa Clara onde morávamos, e andava com um ar de confiança, totalmente à vontade, mesmo estando em terreno alheio. Os cabelos negros, cacheados e compridos, balançavam como o movimento de seus passos; os olhos, negros como os cabelos, expressivos e firmes, que quando olhava, olhava de verdade, desejando ler nos outros olhos, a expressão que os lábios muitas vezes omitem. A boca era divina, destacava-se pelo colorido natural na pele clara. E sorria! Ah, aquele sorriso! Vestia jeans e usava um pulôver de lã vermelho, naquela época um rapaz usando um pulôver vermelho, era visto como ousado, só podia ser de fora, pois os rapazes da cidade não eram tão extrovertidos. Estávamos no mês de junho e fazia muito frio, apesar do sol claro e radiante que estatelava naquela manhã. Chegou sem nenhuma cerimônia e puxou conversa.
- Olá, garotas! Mas que lindo dia esse, não é mesmo?
- Olá, respondemos todas ao mesmo tempo e no mesmo timbre de voz.
Eu que já estava me interessando pelo moço da porta mágica, fui logo me adiantando das outras.
- E de onde vem o nobre jovem, para apreciar cá na nossa terrinha esse lindo dia?
Ao que ele se prestou imediatamente a reparar:
- Ah! Desculpem-me! Permitam me apresentar: Sou José de Azevedo Armando Quartel, mas podem me chamar de “José Armando”, meus pais se mudaram para cá há uns dois meses e eu fiquei para trás, até terminar as aulas desse semestre no meu colégio e agora trouxe minha transferência e vim de vez para cá também. Estou morando no casarão amarelo, bem ali depois da praça.
_Ahhhhhh! O deslumbre foi geral, eu e minhas quatro amigas ficamos extasiadas por sermos as primeiras a conhecer o mais novo e mais belo morador de Itapema. Conversamos por um quarto de hora sobre os mais diversos e interessantes assuntos. Afinal era nossa missão introduzir José Armando na cidade, informando todas as coisas que pudessem ser interessantes para ele e para nós, é claro. Descobrimos que ele se matriculara no mesmo colégio que nós estudávamos e que por um pouco mais de sorte, ficaríamos no mesmo turno.
Começamos a sair juntos, toda a turminha de costume e mais o José Armando; passamos a freqüentar os barzinhos, lanchonetes praias e clubes da cidade. Daí para frente tudo foi mágico como seu aparecimento. Iniciamos um romance, um lindo romance recheado de serenatas, flores, chocolates e presentes. Até dia da sogra tinha presente dos dois lados. Nosso namoro se estendeu por cinco lindos anos! Nesse tempo vivemos todas as aventuras e as delícias de um amor único e verdadeiro. Eu o amava com todo meu ser, alma, corpo, coração. Para mim ele era um “deus”. Eu era inteiramente dele e tinha plena convicção de que ele era inteiramente meu. Outros rapazes não existiam, eu não os enxergava mais e não havia necessidade de vê-los, pois José Armando tomou posse de todos os meus sonhos. Estava completamente apaixonada, nossas famílias se davam muito bem e era do desejo de todos, o nosso namoro.
Terminamos o colegial e ingressamos na universidade, ficamos noivos e estávamos aguardando terminar a faculdade para nos casar. Tudo era quase perfeito, apenas algumas briguinhas incendiadas por puro ciúmes. Eu morria de ciúmes dele e como se não bastasse, havia uma ex-amiga, Mariana, que tinha uma enorme inveja do nosso namoro, não admitia ter ficado para trás, pois desejava tê-lo conquistado e vivia se oferecendo a ele em todas as oportunidades.
No final do último período da faculdade decidimos nos casar. Estava tudo preparado e eu era a mulher mais feliz da cidade, já havia corrido os proclamas e a festa estava a todo vapor. Uns vinte dias antes do casamento, os amigos dele prepararam um festinha de despedida surpresa e como era de se esperar, havia convidadas especiais e dentre elas, Mariana.
Naquela sexta feira, José Armando ficara de me apanhar em casa às sete e trinta horas para pegarmos a sessão das oito no cinema, estava passando um filme lindo (O nosso amor de ontem) e eu queria muito assistir. José Armando nunca fora de chegar atrasado em nossos encontros e quando no relógio da Igreja bateram as badaladas de sete e trinta, eu comecei a ficar preocupada.
José Armando não apareceu em casa naquela noite. Passado o horário do filme, alguém ligou para minha casa, a voz era de mulher, era Mariana, não pude conhecer sua voz ao telefone, mas pelo sarcasmo com que dava a notícia, eu percebi que era ela. “Ficou de Plantão, querida? Pois é, até que enfim hoje chegou a minha vez.”
Eu fiquei histérica, chorei a noite inteira e não tinha senão outro pensamento: No dia seguinte eu iria acabar com o casamento. Minha mãe tentou de tudo para aquietar-me e mesmo com todo carinho e todas as palavras confortadoras, não conseguiu me consolar. No dia seguinte, soube da festa de despedida e que José Armando se embebedara. Soube também que ele ficara aos beijos e abraços com a talzinha e notícias mais perniciosas chegaram a me informar que se trancaram no quarto depois que a maioria dos convidados deixou a festa.
Achei que ia morrer, vi cinco anos do mais puro amor sendo desmoronados, eu olhava o infinito e desenhava o castelo que construí, via-o caindo, e ecos de risadas escandalosas enchiam o ar da minha imaginação. Nesse mesmo dia a recebi um envelope anônimo com duas fotografias onde apareciam José Armando e Mariana se beijando. Tive vontade de me jogar de um edifício. Só queria morrer! Minha mãe fazia de tudo para que eu entendesse que aquilo era coisa dos amigos:
- Minha filha, você não pode julgá-lo dessa maneira. Não pode transferir toda a culpa para o José Armando, ele é um menino tão bom. Tem que admitir que isso foi só um pileque e afinal era a festa de despedida dele, como é que ele poderia recusar? E depois, todo mundo que se casa passa por isso.
- Mamãe, eu sei que você adora o José Armando, mas eu não vou me casar com um homem que me traiu na véspera do meu casamento e ainda mais com aquelazinha lá. Eu não posso! Não Posso! Será que você não entende?
Dois dias depois, ele esteve em minha casa, e nos dias que se seguiram também, mas eu não o recebi. Passado alguns dias, dada a insistência com que se faziam as visitas, resolvi atendê-lo, mas só para devolver a aliança. Ele estava muito abatido e eu querendo me fazer de dura, não dei o braço a torcer, cumprimentei-o cortesmente sem nenhuma manifestação de afeto.
- Boa noite, José Armando, não gostaria de estar passando por esse momento tão constrangedor, mas para que suas visitas não se repitam, decidi recebê-lo, apenas para devolver-lhe isso.
Pasmo, ele olhava a aliança na palma de minha mão direita, desacreditando que eu realmente tivesse coragem para fazer aquilo.
- Nara! Espere Nara, você não pode agir tão precipitadamente, eu não fiz nada do que está pensando, eu só tomei um pileque e fiquei de fogo, não pode jogar tudo fora por uma besteirinha dessas...
- Besteirinha? Besteirinha? Vou já te provar as besteirinhas que você está querendo me fazer acreditar.
Peguei as fotos, e joguei-as em sua direção. Ele não acreditava no que via, ficou branco, depois vermelho, e a partir desse momento as lágrimas já rolavam livremente pelo seu rosto, não sei se de raiva ou de angústia, pois com certeza as coisas se complicavam, tornando tudo mais difícil para que ele pudesse se explicar.
- Aquela bruxa! Como o Ricardo pode fazer isso comigo! Nara, isso é pura armação da Mariana! Você não pode acreditar que eu estava mesmo beijando essa bruxa.
- Não, não! Eu não estou acreditando, eu estou vendo! E quer saber mais? Eu não aceitei receber você para ficar aqui discutindo isso não! Pegue logo sua aliança e essas figurinhas que lhe pertencem e caia fora. Caia fora da minha casa! Caia fora da minha Vida, José Armando! Desapareça!
- Nara!! Você ficou maluca? E o nosso casamento?
- Que casamento, José Armando? O que é que você fez com o nosso casamento? Olha aqui, vá embora, você não já não é bem-vindo aqui. E vê se não incomoda mais, tá legal?
- Mas... nós precisamos conversar! A gente não pode acabar assim!
- Nós já conversamos mais do que era necessário.
Caminhei até a porta abrindo-a, esperando que ele entendesse. Ele permaneceu ainda alguns minutos imóvel, depois olhando as fotografias saiu chorando. Saiu para sempre, pois eu não quis mais vê-lo nem ouvi-lo. Naquela mesma semana tive a triste tarefa de refazer as comunicações aos convidados do casamento, enviando um novo cartão com os dizeres:
“Prezados amigos! Infelizmente, contra a nossa vontade, tivemos que adiar o casamento. Esclarecemos que assim que tudo estiver resolvido retornaremos comunicando nova data. Assinado: Nara e José Armando.”
Maria Helena S. Ferreira Camilo C. Lucas
Obs.: Esse conto terá continuidade e conclusão na próxima postagem.