FORTALEZA

Era uma rua da década de 1980. Tempo de minha comoção em menino. Por entre lotes de terrenos cercados e intervalos de capim ralo, as casas disputavam frondosas castanholas, onde de passaredo me enchia o bafio das calçadas.

As calçadas, quase a única notícia de argamassa. Água Branca, mais que cidade, aquela rua. Por ainda não haver a nova gleba no presépio da urbanidade, eu sabia dos mistérios dos becos abertos nos quais o chilrear nada avisava. Pés descalços na estrada de chão e nem um córrego nos dava lição de vencer. Vencer era não saber que havia luta; na pele dos meus irmãos, sentir na laranjeira nosso modo de quintal.

A avó Sinhá silenciada na sua velhice. Seu chão de folhas escondia o que mais tarde fazia do tempo uma coincidência. Mas por que nunca estivera varrido? Enquanto a indagação não durava, a aparição das primas Leda e Laudilina me enchia de folhas. A alma nossa é que estava por entre o verde chão; as coisas substituíam o próprio sentido, o mundo emanava daquela rua.

O martelo do ferreiro Chiquinho forjando o metal numa melodia a acompanhar as flores baldias da fachada e a anunciar o tempo. Os bolos fritos da velha Nedina até que, numa roda de fogueira, São João me concebeu do cheiro dos bolos a madrinha. A boca de forno em época das casas de farinha: “Filhos, hoje é noite de farinhada. Não vacilem nas mandiocas”. Em quantos beijus minha mãe se reconheceu?

Tempo de festas e de atletismo nos grotões cheios de chuva, dos banhos fluidificando as bicas da igreja católica, da imagem do Seu Dorico desaparecendo na criptografia das paredes de sua casa sozinha, da ausência de trepidação do comércio no sorriso contínuo de Adriano. Uma quitanda de sorrisos. Tempo do quintal sujo da Carla; sem o monturo não haveria quintal ou o passado estaria se compondo.

A hora de ir à escola Monsenhor Boson, tráfego lícito sobre a rua anonimizada em comunicação consigo mesma. Mas havia as brincadeiras de rodas, de esconde-esconde nos troncos de cedro da serraria para a noite descer.

O primo Filho. Apenas juntos é que tínhamos espaço para não trairmos não sabíamos o quê. A caminho de casa, encontrávamos minha mãe vigilante na figura do amor e da incompreensão. Dona Morena do outro lado da cerca de Mandacaru: “Cuide que teu filho é nervoso”. Como a uma vida que me doía de tê-la a mais, eu tomava fôlego, seguia o quintal que ia desembocar nos fundos do cercado de mangas de dona Corina. Entre fundo e fundo dos quintais, o meu patriotismo em atravessar o chiqueiro de porcos que, embora familiar, me fazia um flâneur herói. E mal havia avançado a propriedade, esquecia o medo. De volta, atravessava os olhares da contemplação, examinava o alívio dos meus irmãozinhos em ter-me com vida e festejávamos a hora compensatória de repartir, com mangas, os pães.

Mãe ladeada pela rua de minhas meias descobertas suficientes a um topógrafo. Quando o carteiro indagava: “Rua Fortaleza, número 39?” eu gozava da pergunta retórica a presença de meu pai reunida na escritura da casa. Pai sempre afeito ao silêncio que antecedia os acontecimentos mais banais. Mãe cedendo-me a alma, eis que, à mesa, cada um, em ternura, selava seu melhor segredo.

E a vida corria assim sem prova. A prova era o solavanco dos dias, que se somavam para nossa grande surpresa de haver dias.

Até que se passaram os anos e a rua foi interrompida pela construção.

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 13/02/2009
Reeditado em 01/03/2011
Código do texto: T1437812