DE RELANCE
De relance, que me lembre eu sempre fui uma criança que viveu num mundo do ser só. Vejo-me sempre sozinho, quieto, pensando, fazendo minhas coisas, sempre no mais profundo anonimato – era como se eu fosse minha única companhia. Não que eu não tivesse amigo ou não gostasse das pessoas. È que, de alguma forma, eu sempre mantive uma posição filosófica diante da vida, das pessoas e do contexto que me estava feto.
De relance, Judith Viorst chama disso de “autonomia prematura”, que consiste em proclamar nossa independência cedo demais. Era como se eu desde criança estivesse aprendendo a não permitir que minha sobrevivência dependesse da ajuda ou do amor de qualquer pessoa. Começava, acho eu, a vestir a criança desamparada que havia em mim, com a armadura rígida do adulto autoconfiante.
De relance, meus sentimentos sempre foram sufocados dentro de mim. Nunca permiti que eles explodissem para fora de mim. Isso carrego até hoje. Sim! Até hoje vivo num mundo só meu, quase não compartilhado. E, chego a sofrer por isso.
De relance, na casa onde passei a maior parte de minha infância e adolescência, vivia essa solidão. O que as pessoas sempre viram foi a casca, pois meu interior sempre foi o palco de um tormento sem fim. Faço muitas coisas a muita gente. E pouca gente faz por mim. O que recebo é indiferença versus indiferença. Exponho-me a comportamentos abusivos. Não consigo me livrar deles – sinto-me amarrado.
De relance, tenho aprendido que não devemos deixar que as pessoas percam o encantamento que no início elas nutrem por nós. Quero dizer com isso, que não devemos nos doar ou nos expor compulsivamente. As pessoas gostam do mistério. Da conquista que dá trabalhado. Daquilo que não é fácil. Se não seguirmos esses princípios vamos permitir que as pessoas entrem em nossas vidas de tal forma, que o encanto e o mistério terminam, gerando, dessa forma, o desencanto, a falta de respeito, o dar sem receber. E, aí, bem ai você se apaga, vira um nada. Um saco de pancada, uma pessoa vilipendiada, abusada emocionalmente, financeiramente e, por que não, fisicamente. As pessoas passam a tripudiar de você de forma inumana.
De relance, temos que aprender a nos relacionar com as pessoas com aquilo que, inicialmente, ela nos dá conhecer e nós da mesma forma para, paulatinamente, irmos fazendo um mapeamento da relação, para que o encantamento, o respeito sejam mantidos à base da assertividade.
De relance, se, por exemplo, você vive dando desmedidamente para alguém, e esse alguém não o respeita, faz pouco caso de você. Não compartilha de seus sonhos, de seu sucesso, de sua vida de forma geral, você virou um nada. Você se apagou. O encanto terminou. Dessa forma você precisa voltar para si. Aprender a ter amor próprio. Estabelecer limites e, se necessário, dar um basta nesse tipo de relação codependente. Não devemos nos esquecer que na palavra Deus, o eu está no meio. Isso não egoísmo, mas é amar a Deus sobre todas coisas e o próximo como a si mesmo. Se você vive dando e não tem recebido nem um obrigado. Isso não é amor, mas desafeto, desamor.
De relance, uma cena de minha infância que sempre vem a minha mente foi do dia em que fui buscar Maria-mole numa área alagada perto da casa onde morava. Peguei um balde e fui pra lá. Entre um corte e outro eu parava para ver os passarinhos. Olhava também para uma casa que tinha bem próximo. Era de madeira e de dois andares. Algumas pessoas moravam lá – e me chamava atenção o jeito deles estarem juntos, de se vestirem e de trabalhar. Era engraçado como eles me chamavam atenção. Talvez porque no fundo queria ser como eles – felizes.
De relance, lembro de mim muito pequeno, pele bronzeada pelo sol. Eu não me via como uma criança normal – eu era diferente, por me sentir apreensivo e sem segurança. Era como se eu não tivesse alicerce nenhum – e não tinha mesmo. Eu era uma criança infeliz que tentava sobreviver frente à falta de vínculos não tóxicos e com o sentimento de que eu tinha que fazer reparações constantes. È como se o mundo sempre tivesse me acusando de algo. Por isso vivia me justificando e achando que estava sempre incomodando as pessoas. Daí ter medo de expor uma opinião, manifestar um desejo real, dizer “não” sem me sentir culpado e viver me justificando. Nossa! Que inferno era minha vida – mas isso passou.
De relance, eu estava naquele terreno brincando, rindo, subindo em árvores para ver ninhos de passarinhos. De repente ele surge. Grita. Os tapas começam a correr soltos. Era o Arian, o dono da casa onde fui criado que veio atrás de mim, porque eu estava demorando. Como apanhei naquele dia, meu Deus!
De relance, era assim minha vida – sempre permeada pelo sofrimento e dentre este a indiferença, tipo de agressão emocional silenciosa que sempre me acompanhou. Ela se manifesta de forma perversa em pessoas que ajudamos e que não permitem um não da gente. E isso acontece, principalmente entre aqueles que estão mais próximo da gente – a família.
De relance, um exemplo de indiferença está relacionada com minha tia – uma mulher que sofrera demais. Ela vivia apenas para o trabalho. Vivia pensativa e raramente tinha uma vida social. Durante o tempo em que convivi com ela pude observar seu sofrimento emocional nunca externalizado. Vivia num mundo impenetrável. Seu sofrimento era eloqüente, revelado apenas por um constante estado de solidão.
De relance. Apenas de relance. E a vida continua.