Cidadezinha

Cidade pequena é assim mesmo. Todo mundo se conhece. Mas a maioria não conhece o mundo além dos limites da cidadezinha. Dizem que é comum ter de tudo um pouco: um médico, uma farmácia, uma padaria, um mercadinho, uma barbearia (unissex), uma escola, um ou dois botecos, um templo pra igreja.

E em São João do Carajá era assim também, mas tinha também a felicidade de ser uma cidade tranqüila. A única vez que houve uma tentativa de roubo, na padaria do Seu Marcolino, o povo mesmo resolveu. Quando o safado anunciou sua intenção foi logo surpreendido por um berro de Dona Oclécia, esposa do Seu Marcolino. O povo que estava por ali, sentado na calçada da praça esperando a vida passar, ouviu aquilo e correu para a porta do estabelecimento. Ainda chegaram a tempo de ver o delinqüente segurando Dona Oclécia pela manga do vestido florido com um canivete enferrujado na mão. Laurino, o barbeiro antigo da cidade, depois do ocorrido, falou que só conseguiu segurar o safado pelo pescoço por puro instinto. Se tivesse pensado melhor, não teria feito nada, tamanho era o medo. E o perigo? Na hora que o infeliz se viu preso pelo pescoço por um homem magrinho como Laurino ainda pensou em escapar, mas foi só olhar pra fora da padaria e ver aquele monte de gente (umas cinco) com paus e correntes na mão que se mijou tudo. Largou o canivete e começou a chorar, o salafrário. Explicou que tava passando pela cidade de bicicleta, as pernas não agüentavam mais pedalar sem um combustível pro estômago, como um pão ou um pingado, que ele ia “pedir” a Dona Oclécia, sem muito jeito. Mais safadeza ainda, foi dizer que o canivete não era para ameaçar não, era para passar a manteiga (que ele nem tinha) no pão que era certeza que ia ganhar. Em círculo, o resto do povo foi juntando para ouvir a história do safado. Seu Marcolino, o homem mais alto e gordo da cidade, mas frouxo como ele só, olhava o protótipo de ladrão por cima, de braços cruzados e pernas separadas para dar lugar a gordura que escapava pelas coxas. Toda a pose era para mostrar que ia acabar com a vida daquele safado que assustou sua mulher. Ia nada... Como na cidade não tinha Delegacia, levaram o bandido na carroça de Seu Painço, o dono do boteco ao lado da padaria, até a Jabotão do Bagre, a uns cem quilômetros dali. É claro que Seu Marcolino manteve sua pose e foi junto fitando o ladrãozinho já murcho de tanta inquisição. Mas antes pediu para as beatas Bromelinda e Sivalda acalmarem sua mulher do susto (que parece que maior foi o dele), que já tava com a mão na massa fazendo o pão da tarde. O infeliz foi o caminho todo com os olhos do Seu Marcolino lhe fitando e o estômago roncando alto.

O povo de Jabotão nem ligava quando via a gente de São João do Carajá chegar. Era comum, já que Jabotão era considerada cidade grande. Era lá que o povo ia comprar roupa bonita para os bailes, comida diferente, essas coisas mais chiques. Seu Marcolino queria aproveitar para dar uma volta na cidade para ver as novidades em panificação, que adorava. Mas só para ver mesmo, porque mesmo que colocasse alguma coisa nova na sua padaria não teria quem comprasse. O povo comia o básico mesmo e pronto. Fez um agradinho para a Dona Oclécia, que a essa hora já devia ter se restabelecido do susto (menos ele), e levou um embrulhinho pra ela com duas carolinas (pão doce em forma de rosca para quem não conhece) e outro com meia dúzia de coxinhas. Ela ia ficar feliz da vida, ele achava.

Só na volta da viagem é que resolveu trocar umas palavras com Seu Painço, pra não dar ousadia pro bandido no caminho de ida pra Jabotão. Como demoraram em Jabotão, Seu Painço já tava com tremedeira por estar mais do que alguns quartos de hora longe do seu boteco e, consequentemente, da danada que lhe roubava o coração e todos os outros órgãos juntos, a cachaça. Por isso, dizia ele, não tinha medo de ir pro inferno. Vendia o diabo para os outros mas também usufruía dele...

_ passa lá na padaria pra eu te dar o pão do café de amanhã, pela corrida, Painço.

_ carece de preocupação, não senhor. Fiz o que qualquer um faria no meu lugar.

_ pois é... susto grande...

_ susto grande mesmo...

E aí passavam alguns quilômetros percorridos.

_ será que chove de hoje pra amanhã?

_ sei dizer não senhor...

Só se escutava o bater dos cascos do cavalo no chão. Em um momento Seu Painço fez um sinal com a cabeça que ia dar uma parada pra atender as necessidades fisiológicas. Os dois desceram, mas logo já estavam de volta. Queriam chegar antes do anoitecer pois sabiam que o dia ia ser longo pra contar e ouvir as histórias de cada um sobre o ocorrido. Além do mais, Marcolino apertava o embrulho embaixo do braço, ansioso por saber como estavam as coisas na padaria sem ele. Conhecia bem sua mulher, sabia que ela não ia ficar de conversa com as outras mulheres tendo coisas para fazer mesmo depois do susto.

_ era Firmino, o canalha...

_ era?

_ era...

_ safado...

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Liz Hardt
Enviado por Liz Hardt em 30/01/2008
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