ONDE NAVEGAM OS ESPÍRITOS DO RIO …

Maneco, era desses homens que sabiam viver. Festeiro, falante, meio poeta de beira de rio, carregava nos olhos a vivacidade de quem conhecia os caminhos das águas e da política. Vinha de uma linhagem influente em Fonte Boa — seu irmão Belarmino já tinha sido prefeito, sua irmã Eurídice vereadora, e seu pai um importante estrategista e articulador do médio Solimões. Com sua fala envolvente e o carisma de quem sabia dançar e discursar com a mesma elegância, também sonhava com o destino de um dia servir sua terra natal como homem público, o que de fato um dia se concretizou.

Contador de causos, certa vez ele narrou que, ainda moço, foi convidado para um festejo numa comunidade próxima, como diz o caboco: do outro lado do rio. Era dessas festas boas, em que serviam cachaça de qualidade, com o bom forró nordestino tocado na sanfona e algumas moças de olhos brilhantes se abanando no calor do terreiro iluminado por lampiões.

Relatou que, naquela noite de domingo, o céu estava encoberto. Nuvens pesadas ocultavam a lua, e a escuridão parecia absoluta. Naqueles idos, não havia motor de popa, rabeta ou lanterna. Assim a travessia foi feita no remo, com o olhar atento e a coragem no peito.

Muita gente teria desistido. Mas ele não era homem de recuar por causa da escuridão. Sabia que a mata e o rio testam a coragem dos seus filhos, e como um bom fonteboense, ousado, dizia: “quem tem medo da noite nunca vai entender os mistérios do dia”.

Após se ajeitar em sua barca de itaúba, remou devagar, guiado pelo faro da festa e pela fé de quem conhece as águas pelo som. Quando chegou, a luz de lamparina já cintilava entre os barracões. Sem perder tempo, o jovem espirituoso dançou, discursou, encantou, como bem fez por toda sua vida. Naquela noite, começou a nascer o homem que, com palavras e passos, deixaria sua marca na terra pátria e na memória do povo.

O tempo passou como se transcorre um instante. Logo, o sino imperceptível da madrugada soou três vezes — dizem algumas crenças que, nessa hora, abre-se o portal astral entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Como previsto era também a hora de retornar à sede de Fonte Boa, pois cedo haveria de ir trabalhar no comércio de seu pai. Maneco recordou que, naquele momento, os galos ainda cochilavam e nenhuma guariba havia berrado o prenuncio do romper da manhã. Mesmo assim ele resolveu voltar, apesar dos convites para pernoitar. Talvez, um chamado silencioso o empurrava de volta à sede do chão que o viu nascer.

Chegando ao porto da comunidade, logo deu de cara com o imprevisto: sua canoa havia desaparecido.

Sem hesitar, lançou o olhar atento ao redor, sondando a margem, e sem demora chamou: "Olá, tem alguém por aí?" — mas apenas o silêncio devolveu resposta. Nenhuma embarcação à vista, nenhum som de remo cortando a água. Apenas o frio da madrugada... e uma escuridão mais densa do que o habitual. Foi então que sentiu aquele arrepio miúdo. Não daqueles que vêm da pele, mas os que nascem no fundo da alma."

De repente, no meio do curso d'água, viu um pequeno bote feito de casca de madeira ao longe, surgindo como um vulto sobre a neblina. Não sabia de onde vinha, nem por que vinha. Era como se a noite a tivesse parido. Um homem remava nela, devagar, em linha reta, como quem conhecia todos os caminhos.

O jovem protagonista logo assobiou, acenou, gritou:

— Ô meu amigo! Amigo! Bom dia! Pode me dar uma mão? Minha canoa sumiu e preciso voltar para a sede de Fonte Boa!

A figura não respondeu de imediato, mas desviou o caminho declinando para onde estava Maneco. Foi chegando, sem pressa, até que ficou perto o suficiente para se ver que aquilo não era exatamente o que se esperava. O homem usava um chapéu de palha tão grande que fazia sombra mesmo sem lua. Quando ele levantou a cabeça, o que se viu foi um nariz descomunal, comprido como o de uma anta, só que mais largo, mais grotesco. Os olhos cintilantes e avermelhados pareciam conter brasas adormecidas.

A voz, quando falou, estourou na mata como um trovão contido:

— Entre em minha igara, meu jovem... e eu o levarei, no singrar deste rio, às profundezas encantadas de uma nova experiência.

Mesmo com o sangue gelado, Maneco encarou o desconhecido. Ele sabia que a mata tem seus donos antigos, invisíveis ao olhar apressado e que há coisas que não se explicam, apenas se sentem. E quem vive na beira do rio precisa respeitar o que geralmente não se vê. Por um instante ele ficou ali pensando se aquilo era uma alucinação, um espírito do mato, ou um aviso.

Mas quando o homem sorriu — e o sorriso parecia se alargar até onde não devia — o instinto falou mais alto. Maneco virou-se num pulo e bateu em retirada com a coragem que só tem quem sabe respeitar o medo. Correu sem olhar para trás, como se os seus ancestrais o empurrassem pelas costas. Logo encontrou abrigo na casa de um comunitário e ali se recolheu, rezando baixinho o terço que sua mãe, Zulmira, lhe ensinara.

Com o sol despontando, voltou ao porto. E sua canoa estava lá. Inteira. Encalhada na beira como se nunca tivesse saído do lugar.

Contou essa história muitas vezes aos seus filhos — sempre com a mesma seriedade encerrando o tema com a voz baixa:

— Aquilo não era gente. Nem bicho. Era o rio... era a mata... era um ser sobrenatural.

E então fazia uma pausa, olhava para eles e dizia:

— Tem coisa que só quem nasce no interior e no centro das matas é que entende. E mesmo assim, não conta. Só guarda.

Anos depois, seguindo sua jornada, Maneco realizou seus antigos sonhos, entre eles, o de ser eleito prefeito de Fonte Boa, onde governou com a mesma alma que o guiava nas travessias noturnas: firme, mas sensível aos sinais sutis da mata e do povo.

Disse que, vez ou outra, ele ainda costumava olhar para o Solimões como quem esperava ver, lá na curva do rebojo da Baré, a silhueta de uma canoa fantasma...

E até hoje, quando a noite desce espessa sobre aquela "terra de bons frutos", há quem jure ouvir um remo batendo sozinho, no meio da neblina, e um chapéu de palha flutuando no silêncio das madrugadas como se convidasse alguém a atravessar a cortina da vida... ou seria da morte?

Extraído do Livro: Historias Fantasmagóricas: Edição a Publicar. Manaus, 2025

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 22/04/2025
Reeditado em 23/04/2025
Código do texto: T8315436
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