Cremação
Cremação.
A Cremação é, embora fora do conhecimento da esmagadora maioria da população, um dos procedimentos mais antigos. Existem relatórios dessa prática há 60 mil anos. Dados mais recentes, na Roma antiga, dizem que, no século X a.C., se praticava essa espécie de despedida derradeira.
Enterrar os cadáveres é uma das sete Obras de Misericórdia Corporais Cristã no conceito da Igreja Católica Apostólica Romana. Exatamente por isso, a Igreja não recomenda a cremação, embora não tenha manifesta proibição, se observados alguns dados.
O país onde mais se utiliza a cremação é o Japão. Dados confirmam que 98% dos nipônicos são incinerados e isso se deve, especialmente, à aquiescência do Xintoísmo, religião majoritária, como pela falta de terrenos para construção de cemitérios.
A Grécia enfrenta um problema tão curioso como desagradável. Como não tem crematórios e sendo um país com 80% do território montanhoso e com mais de 220 ilhas habitadas, construir cemitérios é uma equação indigesta. Tanto na capital Atenas como em Tessalônica, que estão no continente, o problema persiste. As tumbas são alugadas por um período de três (3) anos, para que possam ser reutilizadas por novos condôminos. Após esse período, os parentes são convidados a resgatar os restos mortais do seu ente querido e dá-lhe outro destino.
Na Noruega, construir cemitérios está se tornando um problema. Por ser um país muito frio, os corpos não se decompõem e a taxa de cremação de 36% é estimada como baixa. Existem cidades, nas quais as pessoas não podem morrer, como, por exemplo, em Longyearbyen,
Na Índia, a cremação acontece em todos os lugares, mas, preferencialmente, às margens do Rio Ganges, sem o mínimo cuidado. Fogueiras imensas são feitas a ponto de escurecer os céus de tanta fumaça.
A cremação tem como agravante, o fato de que encerra, inapelavelmente, um ciclo. No caso do sepultamento, ainda se pode fazer uma exumação para vários fins.
Outro problema advindo da cremação, é o cuidado constante com a urna das cinzas. Ela requer uma atenção especial, pois alguns acidentes domésticos são previsíveis. É bastante constrangedor, ter que juntar as cinzas de um ente querido com a vassoura, caso a urna caia no chão, espalhando pela casa seu conteúdo.
Embora seja uma prática muito antiga, no Brasil, esse recurso só chegou em 1974, na Vila Alpina-SP. No Nordeste, isso ainda é uma novidade pouco utilizada.
Agora, vamos ao que, de fato, interessa.
Não faz muito tempo, numa dessas famílias ditas economicamente emergentes da capital, mas com os troncos bem fincados no interior, morreu o patriarca, beirando oito décadas e meia de vida. Era um homem forte, espadaúdo, sem comorbidades. Poder-se-ia dizer, com segurança, que morreu por excesso de saúde. Aos 84 anos, não usava óculos, tinha quase todos os dentes, sem a voz embargada, se locomovia sem dificuldades, montava cavalos e segundo se comentava, à boca miúda, ainda “pulava cercas”, se um touro brabo cismasse com ele. Do nada, sem quê nem pra quê, o homem esticou as canelas cedo do dia, para atrapalhar o domingo e salvar a segunda-feira.
Seu nome de pobre era Hermenegildo Luís, e só. Depois que amealhou uns trocados, foi ao cartório e com um “jeitinho brasileiro”, colocou outro nome, dessa vez, imponente: Hermenegildo Luis Carvalho Oliveira Du Bocage Nordestino da Silva. Isso, na verdade, era quase um sarapatel de incoerências.
Morto, os parentes mais próximos optaram pela cremação por ser menos trabalhoso e mais chik. Por motivos óbvios, tudo foi realizado sem a presença dos parentes que moravam no interior.
Passaram-se três anos e eis que um irmão gêmeo de morto, conhecido por Gildo, temendo bater as botas antes de rever a parentada, resolveu ir visitar os sobrinhos na capital.
Gildo, cujo nome era Atanagildo, era uma pessoa de índole mansa. Matuto, contudo, educado, simples e o único vício era cheirar rapé, que guardava num tabaqueiro de chifre de boi.
Para uma estadia de uma semana, levara tantas tralhas que parecia que ia de mudança e nessa arrumação, para sua impaciência, esquecera o inseparável tabaqueiro.
Na capital, até pela distância no tempo, ninguém falou para o tio Gildo sobre a cremação do irmão. Por outro lado, isso poderia soar como algo inimaginável, falta de juízo, um escândalo. Afinal, não seria compreensível para um roceiro, que alguém tivesse coragem de tacar fogo no próprio pai depois de morto.
Impaciente por ter esquecido seu tabaqueiro de estimação, tio Gildo foi acometido de uma espirradeira sem fim, a ponto dos sobrinhos preocupados, falaram em levá-lo a um médico otorrino. Com essa ameaça, tio Gildo fez uma declaração de tapar o fôlego do restante da família:
- Gente, não preciso de doutor não! Eu só queria saber de que foi feito aquele rapezinho da peste que vocês tem ali, naquele tabaqueiro bonito, entre aquelas duas velas. Eita rapé forte com seiscentos diachos!
- Tio Gildo, pelamôr de Santa Pelonha! Aquilo não é rapé! Ali são as cinz…
Neste ponto, a pessoa cortou a conversa pela metade. Era mais prudente não alongar a explicação.
- Meu fi, eu vou levar o “restim” desse rapé pra matar ”meusamigo” de espirrar! Eita bicho forte do cão!
O silêncio, por vezes, é cruel.
São coisas da minha terra.