A viagem sem volta

A viagem sem volta

Coisa que só acontecem comigo - XLIX

Por esse tempo, 1989, eu trabalhava na construção da Transamazônica, BR-230, em Balsas no Maranhão e por má gestão do governo estadual a obra estava parada há doze meses, sem esperanças de continuidade. Eu já tinha acertado minha demissão e estava arrumando os trens para passar sebo nas canelas e capar o gato, quando numa certa noite, tive um sonho emblemático e assustador.

Você está curioso? Então se banque que a treta promete…

Sonho, mas de uma nitidez inquestionável. Em determinado instante, vi-me serpenteando entre as tumbas do cemitério municipal, como que levado por um instinto investigativo, que nem em sonho eu teria motivos e coragem para realizá-lo. Os cemitérios são os últimos lugares da terra nos quais eu poderei entrar por livre escolha. Até hoje, só fui a um sepultamento e de lá saí mais morto que o defunto.

Lembro-me com exata percepção, que eu não caminhava. Não sei como explicar, mas eu levitava a esmo, no entanto com olhos aquilinos, até que parei diante de uma sepultura modesta, mas bem cuidada. Essa apresentava curvatura convexa, protegida por uma cerca retangular de estacas fincadas no solo, de uns 50 centímetros de altura. Na cabeceira, uma cruz de madeira, pintada de preto e o nome da pessoa sepultada escrito com letras brancas, nas duas peças da cruz, conforme a nomenclatura britânica:

A

l

m

e

M o z a n i e l

d

a

Ao pé da cruz, uma data pela metade: 27/09… Meu Zeus! Morri no meu aniversário?!

- Cruz, credo! Pronunciei baixinho. Eu estava morto, visitando meu próprio túmulo!

Cheguei a beliscar-me para ter certeza que eu estava vivo e nesse momento despertei ofegante e não preguei o olho no rastro da noite apreensivo e com medo.

Passei o dia seguinte encafifado, contudo não comentei o ocorrido com ninguém.

Sabe-se, hoje, que nosso cérebro não para nem quando estamos dormindo e pelo menos, uma teoria exotérica afirma que quando estamos dormindo, nossa alma sai do corpo e se aventura mundo afora. Esse último enunciado sendo verdade, posso atestar que a minha alma é desprovida dos conhecimentos mais elementares das minhas antipatias. Isso tudo sem enfatizar um mau gosto da gota serena! Tantos lugares belos que existem no mundo e ela num total alheamento, resolve passear num cemitério.

Se aquele dia não fora um dos mais agradáveis, o dia seguinte fora ainda pior. O sonho se repetira com incrível fidelidade a edição anterior na noite seguinte.

Em matéria de sonhos, as coisas acontecem comigo de forma “suis generis”. Parece-me que o meu redator onírico gosta de escrever em capítulos…

Só que, desta vez, resolvi falar com meus dois colegas de trabalho: o motorista Félix e o laboratorista de solos, Pereira. Ambos já tinham notado minha mudança de humor nos dias anteriores. Como seria de se esperar, eles não deram créditos a uma possível fatalidade. Que tudo não passaria de brincadeiras do subconsciente. Que eu não deveria levar a sério o assunto. Mas como não levar a sério um assunto recorrente com esse teor?

Dois dias depois, na sexta-feira, ocorreu-me uma ideia nada sensata. Chamei o motorista Félix e saímos para um destino por ele ignorado. Eu pedia para dobrar à direita, seguir em frente, depois à esquerda a fim de despistá-lo. Paramos uma quadra antes do cemitério e pedi que ele me acompanhasse.

Eu nunca tinha entrado naquele Campo Santo, mas quando adentramos ela já sabia qual era meu intento e creiam-me, nada ali me era novidade.

- Você acha que o sonho pode ser verdadeiro? Perguntou-me o Félix.

- Não acredito nem duvido nem suspeito, mas muito pelo contrário e vice e versa! Iremos descobrir agora.

Andamos alguns metros, intuitivamente, até que, paramos diante da sepultura. Tudo como estava descrito no sonho; tudo, exatamente e inacreditavelmente, igual. Se se colocasse uma trilha sonora, estaria melhor que o CinemaScope da Twentieth Century Fox nas décadas de 50/60. Foi de arrepiar!

Para você que me conhece, certamente, terá o meu nome como raríssimo, mas nem tanto assim. Eu já tinha encontrado um garoto e um rapaz com meu nome e sobrenome e por mais estranho que se possa supor, tenho ciência da existência de mais dois em São Paulo e outros setenta por esses Brasis adentro, segundo o IBGE. Morto e enterrado, aquele era o primeiro.

Os coveiros não tinham informações, ou por ética de ofício não quiseram falar sobre isso. Apenas, disseram que a sepultura não era nova e isso se notava sem muitos esforços.

Para mim, nada daquilo tinha explicações, malgrado saber que o acaso é incapaz de .produzir tantas sequências de fatos reais.

Isso tudo aconteceu no fim da última semana de abril de 1989, dia 28, sexta-feira e mesmo que eu vivesse mil anos não esqueceria.

Pois bem, no dia 1° de maio, feriado, o Félix chegou meio apavorado em minha casa. Claro que estranhei. Embora Balsas fosse ainda uma cidade pequena, nós morávamos em pontos diametralmente opostos e distantes. Ele, no Potosi e eu, na Trizidela.

- E aí, qual a novidade? Perguntei como saudações.

- Rapaz, você não vai acreditar! Ontem morreu um amigo meu e estou vindo do cemitério, após o enterro. A tua cova sumiu…

- O quê?! Perguntei incrédulo.

- Não sei o que aconteceu, mas doido eu não estou. Aquela sepultura evaporou-se!

Entramos, imediatamente, no carro e fomos ver esse fenômeno do inimaginável…

Era verdade. No local nada existia, nenhum vestígio por mais simples que fosse. Não havia indícios de terra remexida e a vegetação e capins comuns da região estavam sem ser carpidas há, pelo menos, um mês. Os coveiros, mais uma vez, não se pronunciaram sobre o assunto. Para complicar tudo, os dois coveiros disseram que não nos conheciam e muito menos tinham falado conosco sobre qualquer assunto, em tempo algum.

Quatro dias depois, eu estava vindo de mala, cuia, quatro filhos e um papagaio para Sergipe, deixando um passado ressuscitado no Maranhão e um mistério escabroso sem solução.

São coisas que só acontecem comigo.