Medidor de Terra                                                                                                 

                                                                                                 

                                              Moura Lima

 

 

O amanhecer derramava luzes pelos campos; ouvia-se, nos ermos, o canto alegre da seriema no alto da chapada, e o correr das emas na imensidão do sertão do Jalapão. Ao longe, riscava no horizonte o perfil da serra, delineando o rebordo do Morro do Sino.

Pedro Peba, um gamela medidor de terra, com seu velho teodolito fixado num tripé desconjuntado e amarrado de arame, fazia a leitura na bojuda bússola e gritava ao balizeiro de vante para aprumar a baliza na picada. Ato contínuo, desinstala o instrumento, coloca-o na capanga de couro e, num movimento brusco, joga-o na anca do jumento para prosseguir. Em um passo tardo, de mandrião mamparreado e sem compromisso técnico com a precisão dos serviços topográficos, análogo a um fazedor de cerca, Pedro Peba vai dando o rumo à luz das balizas e anda... anda... vários quilômetros de picada pelo cerrado afora. De vez em quando, parava para tomar uma talagada de cachaça. Só Deus sabia, em Sua santa Misericórdia, onde ia dar o alinhamento com a variação angular daquela técnica primitiva. Pensar em fechamento angular e linear era esconjurar o santo ofício topográfico.

Assim era feita a maioria dos serviços de medição de terra no norte de Goiás. Os agrimensores formados não se arriscavam a meter-se nos gerais para enfrentar a fome, onças, carrapatos e cobras como a terrível urutu. Na verdade, eles preferiam ficar no aconchego da capital goiana, encafuados no departamento de terras com seus gordos salários. Os políticos serravam por cima, já que queriam porque queriam os loteamentos aprovados no afogadilho, pretendendo fazer média com os currais eleitorais. Em relação aos problemas fundiários do futuro, decorrentes da descabida medição, decretavam: “Que sejam resolvidos pelos interessados no amanhã!”

Pedro Peba fitou o sol, que já descambava no horizonte, e chamou os foiceiros para formar, com os cabos das foices, um esquadro de 90 graus.  Dessa maneira, deu o rumo da poligonal e mandou cravar a baliza direcional, abrindo a barba no mundo. Pedro Peba resmungou zangado:

— Ora bolas! Para que luxo de aparelho?

Ao longe, o trovão roncou sentido para as bandas do rio Caracol, e tudo escureceu, prenunciando mormaço fechado. Pedro Peba não perdeu tempo: passou a perna no burro e saiu puxando, pelos trilheiros, o cargueiro com a tralha à procura de morador para o pernoite. Aí ele perdeu-se no emaranhado do caminho. Então, torou à direta e foi sair no rancho. Havia um relampejar de luz no interior. Os cachorros deram as boas-vindas, ladrando furiosos. Pedro Peba gritou na escuridão:

— Ô, de casa!

De dentro, apagaram as luzes. Fez-se silêncio. Sem se fazer de rogado, gritou novamente:

— Ô, de casa!

Alguém se movimentou e abriu a porta com um candieiro ao alto:

— Quem vem lá?

Peba, com a alma na boca, explicou que era o medidor de terra e que queria pernoitar. O vulto movimentou-se, aproximou-se do burro, com o candieiro ao alto, e foi batendo no surrão para verificação; com sua voz grave disse:

— Pode entrar Seu Piloto! Se abanque – apontando-lhe o cepo.

E continuou:

— No meu Rio Grande do Sul, medidor de terra é chamado de Piloto. Vai me desculpando o modo rude do tratamento, mas os tempos são outros. Os invasores de terra estão aí para aprontar das suas. Sou um homem caridoso... e posso dar de graça a eles sete palmos de terra. É só entrar em meus domínios.

Pedro Peba apressou-se em responder:

— Fique sossegado, meu patrão. Estou indo para as bandas do rio Caracol. Só meço terra devoluta a mando do governo. Há espaço para todo mundo que quer trabalhar.

— É verdade! Terra tem de sobra para quem quer trabalhar; mas cadê a coragem para pegar na enxada, machado e foice? Sei que a pobreza é a mãe de todos os crimes. Os espertalhões do poder político e do poder religioso cultivam a pobreza para se eternizarem no mando. Como seria bom se esses líderes voltassem a ensinar ao povo a trabalhar e a ganhar o pão com o suor do rosto, em vez de ficarem cobiçando o alheio, na tocaia do roubo, da mentira e da vadiagem.

O gaúcho coçou o bigodão e gargalhou uma risada estrondosa.

— Meu amigo, chega de prosa, a noite já vai avançada. Bote seus apetrechos no galpão.

Peba, sem delonga, foi até o burro e começou a soltar os ligais que prendiam seu velho teodolito. No entanto, das frestas do rancho, ouviu o vozeirão do gaúcho dando ordem:

— Se apresse no preparo da boia para o medidor de terras, e, no final, mate!

De cá de fora, peba levou um baque de bater a pacuera ao ouvir a palavra “mate”. Não titubeou! Passou a perna no burro e saiu num trotar louco, jogando gorgulho para trás.

O gaúcho Teodoro saiu à porta, mas o barulho dos cascos já ia longe, e ele apenas gungunou:

— Que deu no homem? Acho que ficou zoró dos miolos!

 

 

 

 

MOURA LIMA
Enviado por MOURA LIMA em 09/12/2023
Reeditado em 23/01/2024
Código do texto: T7950232
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