“Um Valentão Arrependido

                  

                                                                                              Moura Lima

 

1960 – outubro.

 

A campanha eleitoral eclodia acirrada por todo Goiás. Mauro Borges, filho de Pedro Ludovico, concorria ao cargo de governador pelo PSD, enquanto José Ludovico de Almeida, um farmacêutico de Itaberaí, concorria pela UDN.

 

No povoado de Capelinha, distrito de Itaberaí, o ambiente era tenso, com brigas e arruaças dos eleitores analfabetos. A prova estava ali, debaixo da barriguda, onde os ociosos reuniam-se. O líder da gentalha era o barbeiro Zé Narigão, a maior língua do povoado, que arriava o porrete nas mulheres casadas que pulavam a cerca e atingia também os políticos com suas calúnias e lorotas. A gargalhada explodia de vez quando; outras vezes, os pescoções, oriundos das discussões, resultavam em facadas de peixeira no bucho dos briguentos.

 

O fazendeiro Godofredo Luzeiro caminhava pelas ruas; baixo, gordo e com um olhar carrancudo; armado com um revólver de cano longo, pendurado na cintura, que balançava em seu ventre volumoso; a seu lado, o sobrinho Tiziu e os capangas. Rindo às gargalhadas, disparavam foguetes nas casas dos adversários da UDN e provocavam discussões.

 

Godofredo arrotava valentia e carregava duas mortes no lombo, sendo a primeira delas cometida aos 17 anos, em Goiás Velho, com o assassinato do fazendeiro Manga Rosa. A manhã era chuvosa, Godofredo esperava-o de tocaia, e assim que o fazendeiro passou em sua mulona, o assassino alvejou-o com uma descarga de carabina; o outro crime deu-se, por desentendimento com seu agregado, Lindolfo, que Godofredo mandara embora de sua fazenda, mas o homem, que era cabra-macho, resistiu, indo, já com sua parte, somente depois da colheita do arroz. Enquanto colhia seu arroz e levava uma braçada para bater no jirau, recebeu uma descarga de cartucheira no peito. Daí em diante, Godofredo tornou-se valentão e por dá cá aquela palha ele surrava o cabra. Em Capelinha, naquela eleição de Mauro Borges, Godofredo procurava confusão por qualquer motivo político fútil e prosseguia pelas ruas, soltando foguetes provocantes.

 

Como dizem os velhos sertanejos: “Na política, o diabo cochicha, estimulando os seus discípulos ao abismo da maldade…”, e dessa forma acontecia.

 

Ao deparar-se com o vaqueiro de Paulo de Souza, seu compadre, Godofredo desfeiteou-o com tapas e pescoções justamente por ele ser da UDN. À tarde, foi para o bar do Odílio e, com sua turma, encharcou-se na cachaça e na cerveja. O fazendeiro Juliano entrou despreocupadamente no recinto e, desfeiteado com palavrões e pescoções, saiu às pressas, todo zangado, para pegar armas em sinal de represália à agressão sofrida. Um babaquara, do tipo leva e traz, correu à casa de Paulo de Souza e contou-lhe que seu irmão estava sendo agredido. Como era um homem pacato, entrou em seu jipe e dirigiu-se ao bar com o intuito de apaziguar os ânimos. Logo que abriu a porta do veículo para descer, Paulo recebeu uma rajada de tiros de seus adversários políticos comandados por Godofredo e seu sobrinho Tiziu.

 

No ardor da refrega, vendo seu irmão morto, Juliano, da calçada da casa comercial de Geraldo Borges, ainda disparou sua carabina oitavada no grupo assassínio. Um dos projéteis atingiu Godofredo, raspando seu ventre volumoso, e o sangue brotou sob a camisa branca. O tutanqueba ficou apavorado com o perigo e, com seus cacundeiros, fugiu do local em uma camioneta, a toda velocidade, em direção a Uruíta. No povoado, a notícia explodiu como um barril de pólvora:

 

— Mataram Paulo de Souza!

 

Os homens de bem de Capelinha armaram-se para ir atrás dos criminosos, mas foram demovidos pelo patriarca, chefe maioral do burgo, que os exortou a aguardar a punição da justiça, convidando-os para as orações em intenção do morto e para os preparativos do velório.

 

Paulo de Souza nasceu em Patrocínio dos Buritis, na região de Santa Rita do Paraíso; chegou ao sertão de Capim Puba na década de 1940, ainda jovem, carregado de sonhos e esperanças. Dedicou-se à terra e, como benfeitor, vislumbrou o futuro da região. Numa cerimônia realizada no Engenho Capim Puba, que pertencia a seu sogro, casou-se com uma moça distinta. Como era empreendedor e trabalhador, logo implantou sua fazenda no Jenipapo. Lembro-me do quanto eu me empolgava ao ouvir o repicar do berrante pelo ponteiro de suas boiadas na travessia do rio Uru. Meus irmãos e eu subimos até as grimpas do centenário jatobazeiro, na sede de nossa fazenda, para ver a boiada em saracoteio ondulante subir o espigão da estrada, levantando uma nuvem de poeira que se perdia no horizonte. O som dolente do berrante ia longe pelos descampados e soava grave como se estivesse pontilhando a passagem da vida.

 

A noite do velório foi longa, triste e angustiosa. A chuva caía pesada, os relâmpagos riscavam o firmamento, ao som das trovoadas. O carrilhão da igreja tocou à meia-noite, e o som ecoou pelo povoado, lembrando a todos que o relógio havia sido doado pelo morto e cobrando justiça. O silêncio foi quebrado pelo ressoar das marteladas do carpinteiro Nicodemos fazendo o caixão. A aurora rompeu no horizonte, e o sol brotou no nascente por cima da mataria que bordejava as margens do rio Uru. A cauã cantou triste na mata, e a seriema cantou forte no alto do chapadão, saudando o dia!

No dia seguinte, 15 de outubro, o enterro riscou a rua principal, em direção ao campo-santo. A multidão acompanhava de cabeça baixa, com a tristeza estampada no rosto. A viúva grávida, que carregava no ventre um filho que não conheceria o pai, seguiu o caixão chorando. Capelinha mergulhou numa imensa consternação pela perda de seu líder que tanto lutara pelo progresso da vila e sua emancipação.

 

Após a repercussão do ato criminoso, houve um impacto profundo no inconsciente coletivo. Várias famílias importantes mudaram-se de Capelinha, resultando na decadência da vila.

 

A neurose da resignação com o medo agiam de forma sutil na mente dos idosos da família, que pediam para esquecer o terrível crime e falar apenas boas coisas. Dessa forma, implantava-se no subconsciente das gerações futuras não somente o sepultamento do morto, mas também a história de Capelinha e do maior líder daquele rincão das barrancas do rio Uru. Ledo engano, pois não se altera a história e o processo criminal na sentença do tempo: “Debaixo do sol, não se esconde nada!”

 

Anos depois, os criminosos foram chamados às barras da Justiça, na Comarca de Itaberaí. No dia do julgamento, entretanto, o advogado de defesa, sentindo que seus constituintes seriam condenados pelo ato bárbaro, pediu desaforamento do processo para a Comarca de Itaguaru. Devido a essa manobra, distantes de Itaberaí, os jurados foram manipulados, e os criminosos foram absolvidos. De fato, somente um foi condenado.

Alguns anos depois, os criminosos iam à cidade e eram recebidos de forma calada devido ao ato condenatório.

 

Todavia, transcorridos anos, aqueles criminosos, num intenso tiroteio com a polícia em Rubiataba, foram mortos. Tiziu recebeu um balaço no meio da testa, um vaqueiro de Godofredo também caiu morto, e o próprio Godofredo recebeu um tiro de fuzil no abdômen, sendo levado de avião para Goiânia. No momento que a aeronave levantava voo, os policiais chegaram e ainda atiraram, mas o baleado conseguiu fugir, internando-se num hospital na capital. No leito de morte, Godofredo vociferava que, se Deus o livrasse da morte, ninguém de sua família usaria mais armas. Entretanto, era tarde! A justiça divina cumpria-se, levando-o ao “além” para o julgamento eterno.

 

 

* Extraído do livro do autor — A Conquista do Sertão de Capim Puba; º edição — Editora Cometa - 2021

 

 

*Moura Lima é um escritor goiano-

Tocantinense, advogado, romancista, contista, ensaísta, autor de várias obras. Membro da Academia Tocantinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico e pertence à Academia Piauiense como membro correspondente.

 

MOURA LIMA
Enviado por MOURA LIMA em 03/10/2023
Reeditado em 27/06/2024
Código do texto: T7900307
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