Coisas que só acontecem comigo - XLII O diabo e a secretária
Coisas Que Só Acontecem Comigo - XLII
O Diabo e sua secretária.
Já dizia minha avó: "O Diabo quando não vem, manda o secretário". Foi assim que em uma dessas encruzilhadas da vida, encontrei-me com o Diabo dentro de um shopping center aqui neste Cajueiro dos Papagaios - Aracaju.
Não era um pobre Diabo qualquer levado da breca, do tipo pé de chinelo com metade do calcanhar no chão. Ai quem dera! Antes "cesse"! Aqueles diabos que pintam de vermelho, com chifres, tridentes e rabo não me fazem medo, sei defender-me. Na verdade, era uma Diaba, daquelas que tem um belo dos atributos citados acima, após a palavra tridentes.
Shopping Jardins, tarde de uma sexta-feira qualquer. A priori, eu pensei de chofre que se tratasse de uma "pegadinha" de televisão. Eu, velho pescador, acostumado a lançar anzol no Rio Parnaíba, sabia muito bem quando o mandi beliscava a minhoca. Foi exatamente assim que senti uma mão feminina passando sobre mim, abaixo do cinto…
Pouco tempo antes, espaço de dez segundos, vi que duas moças muito bonitas, dessas de perfumaria de shopping, iriam passar por mim em sentido contrário. Lembro-me bem de um pormenor insólito: as duas afastaram-se, fazendo com eu obrigatoriamente transitasse entre elas. Foram essas Diabas que que executaram a ação descrita.
Aguentei firme o tranco, segui meu caminho sem olhar para trás, como se nada me tivesse ocorrido. Vinte metros além, dobrei à direita e entrei na Livraria Escariz.
Pouco tempo depois, as mesmas moças entraram na livraria. Seguramente, elas deram a volta e me seguiram de volta. Talvez eles tenham se impressionado com meu porte "sarado", atlético de jogador de carteado e não se deram por vencidas. Eu nem mais me lembrava do fato e o templo que tive foi o de pegar um livro na prateleira e tomar assento em uma mesa, lendo a "orelha" do exemplar.
Ela chegaram e como quem não querem nada, a primeira falou suavemente:
-Boa tarde! Podemos tomar lugar a essa mesa?
Foi então que revivi todas as cenas ainda frescas.
-Pois não - respondi - fiquem à vontade!
Tomaram lugares, de forma que ficamos equidistantes, num triângulo prefeito em mesa redonda.
-O senhor... desculpe-me, posso chamá-lo de você?
- Claro, sem problema algum.
- Sou consultora e me chamo Keite e essa é minha amiga Kariny. Você não me parece ser daqui de Aracaju…
Daí em diante, apenas Keite falava. A outra chegou calada, saiu muda, contudo me examinava com minúcias.
- Sou e não sou -respondi. Vim de mais ou norte, mas amarrei meu jegue aqui há mais de duas décadas. Sinto-me familiarizado. Sou feliz aqui, mas conservo meus modos de origem. Fico contente por você ter notado a diferença.
Por esse tempo eu já sabia que não conseguiria ler coisa alguma. Fechei o livro e me detive à interlocutora. Como eu já disse que elas eram muito bonitas, nem preciso alongar-me em detalhes. No entanto, em outras épocas, eu diria que elas seriam exatamente o meu número! As noras que minha mãe sonhara!
-Você não é casado?
Demorei a responder, porque a indagação parece-me impertinente. Eu sempre usei aliança e agora tinha uma de duas cores que não passaria despercebida, além disso, eu estava com as duas mãos sobre a mesa. Por outro ângulo, ela poderia não estar totalmente tresvariando.
Lembrei-me em um relâmpago de memória, que segundo se comentava, no Norte do Brasil, alguns homens usavam um olho de boto no bolso da calça como amuleto infalível para arranjarem mulheres. Com a matança proibida do animal ficou impossível conseguir um olho dele. Veio então outra saída mágica como alternativa com a procura da pena do rabo do uirapuru. Ora, ora, quanta crença! Quem não tinha pena do rabo, se virava de outro jeito. Foi com essa dificuldades todas que se descobriu o poder da aliança.
É fato, que muitas mulheres já não alimentam aquela expectativa pelo casamento tradicional. Preferem algo mais "genérico, light, diet ou sprite". Outras não estão nem aí e são como carro flex: queimam qualquer tipo de combustível, sem se preocuparem com ninharia de centavos de diferença entre um e outro posto.
Existe, aliás, uma determinada analogia de homem com aliança e carro parado no estacionamento com a chave na ignição: ambos estão implorando para serem levados! Claro que essa afirmação não procede, pelo menos até ao término do vigésimo capítulo.
Nem tive tempo de responder porque uma afirmação já cortava o ar.
-Você é um homem bonito…
A vontade de gargalhar não foi pequena, mas me contive.
-Muitíssimo obrigado! Você é a segunda pessoa que me diz isso em mais de meio século. A primeira foi minha mãe. Isso me leva a deduzir que já não temos tantos olhos generosos, ou pecam pela sinceridade do silêncio.
-Você trabalha em quê
-Sou engenheiro.
- Engenheiro civil e intelectual. Que maravilha!
A exclamação tirou-me de uma enrascada pelo meu tirocínio pouco explorado.
-Não! Não sou isso que você falou e nem sou engenheiro civil e também nem sei porque entrei aqui. Trabalho num engenho de moer cana no interior. Uma moagem pequena, mas eu gosto de lá. Sou o responsável por limpar e fazer a manutenção das moendas do engenho. Também cuido de tanger as duplas de bois, que rodam as moendas que tiram a garapa.
Senti como se a moça despencasse de um penhasco siberiano. A decepção que lhe assomara seria impossível ocultar. Ele levantou-se numa lentidão silenciosa e saiu. Ainda me deu vontade de oferecer mais um copo!
Pois é, quando o Diabo não vem manda o secretário. Outras vezes ele vem com secretário e tudo mais.
Ah! O nome do livro: Encrenca, de Non Pratt.
São coisas que só acontecem comigo.