Eu estava morto e não sabia. Coisas Que Só Acontecem Comigo - XLIII

Eu estava morto e não sabia.

Coisas que só acontecem comigo - XLIII

O Brasil é, numa análise otimista, um país esquisito, habitado por seres exóticos. Tudo o que for de anormal, aqui pode ser rotineiro. Tudo o que for de condenável, aqui poderá ser acato de bom grado. Muitos fatos escapam das mais perspicazes mentes ilusionistas. Temos expressões engraçadas, para não dizer bizarras, como por exemplo, para identificar um elemento preguiçoso, dizemos: “aquele está morto e esqueceram de enterrar!”

Fatos chocantes também são revelados diariamente, como o de uma mulher que levou o pai morto numa cadeira de rodas, para fazer prova de vida numa agência bancaria, em São Paulo. É possível acreditar nisso?

No país dos absurdos, onde até o Esperma matou Zóide e onde defuntos votavam há bem pouco tempo, aconteceu a “inacreditível” história do juiz Orimar Pontes, que absolveu um réu em Goiás, na década de 70, com base numa carta psicografada pelo médium Chico Xavier. Tudo isso mostra que a prova da vida ou da morte é apenas uma questão de ponto de vista.

Por falar em prova de vida, na época do Governo João Figueiredo, criou-se o Ministério Extraordinário da Desburocratização, cujo titular foi o Ministro Hélio Beltrão. O país estava de tal forma emperrado, que parecia um caminhão velho, querendo subir uma ladeira com o freio de mão puxado. Uma das primeiras medidas tomadas pelo Ministro foi acabar com o certificado de vida e residência. Ora, era muito chato a pessoa se inscrever para um concurso e ter que provar que estava vivo. Neste caso, a carteira de identidade não identificava e não tinha a menor utilidade. Atualmente, outro documento sem a menor função é o título de eleitor, pois qualquer pessoa pode votar hoje, apresentando qualquer documento com foto.

Por falar em prova de vida, há duas semanas, em plena ascensão da peste chinesa, intimado pelo aplicativo, eu tive que sair de casa para fazer uma tal prova de vida, na minha agência bancária, que estava em aberto. Lá, fui informado que esse serviço estava suspenso até o término da pandemia do Covid-19. De cara, já não gostei da brincadeira. Engoli seco e retornei. Na semana passada, a gerente me convocou pra comparecer à agência, para prestar essa informação. Questionei essa imposição, já que eu estivera lá com esse objetivo. Não adiantou. Falei que ela me conhecia, sabia meu telefone, tanto que estava falando comigo, que poderia simplesmente ativar o sistema com minhas informações. Não adiantou...

Ontem, muito a contra gosto, retornei à agência e qual não foi a minha desagradável surpresa...

- Pronto, vim fazer a prova de vida.- disse para a minha atendente, entregando-lhe minha carteira de identidade, comprovante de residência, cartão de vacinação contra influenza e febre amarela, cartão do banco, certidão de casamento, batismo e crisma.

- Senhor Mozaniel, o senhor está morto. - disse-me ela, olhando fixamente no meu rosto desfigurado, após alguns minutos.

É numa hora dessas que a gente sente que está morto mesmo, pois fica sem ação e sem diálogo lógico. Lembrei-me de que, em janeiro de 2019, escrevi o Soneto Epitáfio que, de tão minúsculo, poderá ser colocado no alto de minha cruz. Resume-se apenas num til (~). Também me veio à memória um vídeo do Padre Fábio de Melo com sua amiga Gerusa, em que ela dizia estar morta desde 2012, baseada numa pesquisa científica de que cada 50 ml de álcool consumido por alguém diminui cerca 500 minutos de vida dessa pessoa. Criei forças e argumentei desolado:

- Posso saber, pelo menos, onde estou enterrado? Posso saber a razão de não terem avisado a minha família? Ainda ontem estive no batizado de meu neto “Azogue”. Será que foi por isso que passei despercebido entre tanta gente? Se estou morto, por que continuo pagando o boleto da empresa funerária? Quem sacou dinheiro com meu cartão no caixa eletrônico do supermercado ontem?

- Não tenho essas repostas. – continuou ela – só sei que aqui no sistema o senhor não aparece.

- Se não estou no sistema, o sistema deixou de ser sistêmico e o meu sistema imunológico pifou. Isso prova que estou morto de fato?

- Desculpe-me, senhor, mas não sei informar.

Após mais de meia hora de aperta daqui e tecla dali, a atendente me entregou uma folha de papel, para que eu assinasse.

- Não posso assinar, não tenho condições vitais para isso.

- Como assim, senhor Mozaniel? O senhor está ai, forte, rico e bonito!

- Eu estou morto. Morto de vergonha, de decepção. Como irei contar essa aventura “defuntífera” em minha casa? Só irei assinar isso, em agradecimento pelo “bonito”!

Assinei, agradeci e saí, certo de que há muitas coisas que só acontecem comigo.