*O delegado proverbial

O delegado proverbial

Conta-se que, na era em que se criava jegue com pão de ló, numa cidade do interior do Piauí, que nem convém citar o nome para evitar ciúmes, mas que fica ali para as bandas donde o cão coxo perdeu os bigodes queimados ao sol, havia uma feira livre que funcionava aos sábados.

A cidade realmente era tão pequena que, em se matando um boi, era preciso salgar uma banda, já que até então não existiam freezers. Na feira, havia de tudo, ou melhor, quase um terço de quase tudo. Como em qualquer canto do mundo tupiniquim, a feira, além de feira, pode ser uma terapia para alguns ou um inferno para quem detesta aglomerações, como no meu caso.

Essa feira funcionava no Largo da Matriz, mas não no átrio propriamente dito e sim, no quadrante oposto, a uns duzentos metros. Como é fácil de imaginar, as casas residenciais existentes nas ruas que contornavam o largo da igreja ficavam de frente para a feira.

Pois bem, dois dos nossos personagens eram bastante conhecidos por venderem milho em grãos: “seu” José Bigode de Arame e dona Zéfa das Cabaças. O primeiro era assim conhecido por motivos óbvios e a segunda, nem tanto. Ambos eram viúvos e se falava à boca miúda, como boca de siri, que os dois estavam querendo ajuntar os panos de bunda no mesmo baú. Tudo se desenrolava bem até que...

Uma das marcas positivas das cidades pequenas é que todos se conhecem e, por isso mesmo, se estabelece uma confiança natural entre os moradores. Tirando-se as fofoqueiras de plantão, que também acabam se tornando uma marca registrada e até necessária para a cidade, apesar do incômodo, o resto funciona às novecentas e noventa e nove maravilhas.

Bigode de Arame e Zéfa das Cabaças moravam vizinhos de meia parede e de frente para a feira. Ambos vendiam milho em grão, numa medida de peso conhecida como “prato”, equivalente a 1,5 kg. Colocavam suas sacas de milho na porta de casa e aguardavam que os fregueses lhes chamassem.

Numa dessas, Zéfa das Cabaças descuidou-se e quatro cabras que andavam à solta nas ruas aproximaram-se e comeram quase todo o milho de sua saca. Vendo o prejuízo e querendo dar uma de esperta, rapidamente trocou sua saca com a do vizinho, após afugentar os animais. Em seguida, chamou o amigo que, vendo a bagunça, não ficou nada contente.

Sabendo de quem eram as cabras, a encrenca foi parar na delegacia, onde o Sargento Rodrigo fazia, às vezes, de delegado. Naquele tempo, delegado do interior fazia às vezes de juiz, promotor, perito criminal e investigador de uma só lapada. O mesmo que investigava oferecia denúncia, prendia e sentenciava, muito parecido como alguns Ministros do S.T.F. de hoje. A verdade é que ele se revestia de uma autoridade que não lhe era própria e, mesmo sem conhecimentos jurídicos, acabava prestando um bom serviço à comunidade.

A Instância Jurídica que cobria a região quase sempre ficava em outra cidade distante. O Delegado quase sempre estava ali por interferência política e a bem da realidade dos fatos, era pessoa de confiança que resolvia os problemas pelo bom senso.

“Modus operandi e in loco”não eram expressões usuais, embora ainda se ensinassem Latim nos colégios. Com esse objetivo, o Delegado Rodrigo compareceu ao local da denúncia e, com seu faro apurado e olhar aquilino, notou que havia grãos de milho espalhados no local onde estava a saca de dona Zéfa das Cabaças, quando o normal seria na porta de José Bigode de Arame. Ciente de que tinha acontecido outra trapaça, levou os dois para a delegacia, juntamente com o dono das cabras, a essa altura, já identificado.

Como a testemunha asseverava e ratificava tudo como da primeira vez, o delegado ordenou que o dono das cabras cobrisse os prejuízos ao prejudicado, pagando-lhe uma indenização equivalente a 40 pratos de milho, no caso ao Sr. José Bigode de Arame.

Depois disso, chamou a dona Zéfa em particular e disse saber que ela estava mentindo. Que poderia prendê-la por falso depoimento e só não o faria, porque ela já estava sendo punida, por não ter falado a verdade. Sua mentira acabara favorecendo a quem ela queria ferrar.

Em seguida, chamou o Sr. José Bigode de Arame e contou-lhe que havia acontecido uma trapaça, mas que ele acabara, por justiça, sendo beneficiado. Com isso, dona Zéfa acabou perdendo também um possível casamento.

Quando seu auxiliar de investigação perguntou como o delegado chegara a tal conclusão, a resposta foi supimpa, de deixar Salomão de queixo caído:

– Muito simples: “O que é do omi, o bicho num comi”.