CONTO DOS TRINTA ANOS

CONTO DOS TRINTA ANOS

Existiu na Bahia um José(a), que alcançou a maioridade morando bem longe de casa, pois havia sido aprovado no vestibular para o curso de Administração da UFES, ainda sob o ano ditatorial de 1982.

Ali, em terras capixabas, descobriu finalmente o que os livros de sociologia e história brasileira já decantavam, pois sentiu na pele os resquícios da escravidão, com as discriminações étnica e social, que estavam afloradas no seio de uma comunidade mesclada fortemente por povos de origem europeia.

Naquela etapa ele se deparou com o seguinte diálogo, flagrado enquanto deslocava da cidade de Vila Velha num ônibus coletivo, para a Universidade, a qual ficava na capital:
Passageiro 1: "Rapaz, você viu o noticiário de hoje, na rádio Gazeta? Houve um assalto em pleno ponto de ônibus, ali em Cariacica.";
Passageiro 2: "Só pode ter sido um baiano. É um povinho ruim!";
Passageiro 1: "É mesmo, de lá só vem merda! Deviam matar todos eles."
E José, naquele instante, encheu-se de temor - e calado estava, calado ficou, pois imaginou: se eu falar algo aqui, vão perceber meu sotaque, e vão querer me linchar, como tentaram fazer naquele dia em que foi passar um final de semana no sítio da sogra de um primo, lá pras bandas de Guarapari, quando uma senhora urinou nas próprias vestes, devido ao excesso de lotação do ônibus intermunicipal, e se viu jogada pra fora, pela janela do veículo, juntamente com a sua bagagem.

E lá seguiu no seu deslocamento para mais um dia de aulas, com a certeza de que sempre correria riscos de vida, enquanto estivesse longe do seu habitat, destarte estar no próprio País. E também ficou a pensar sobre o conceito de nação, num lugar que é a mescla de tantos povos e etnias, no qual os objetivos e valores quase sempre são díspares.

Mas o tempo passou, e adiante, estando formado academicamente, casado, com dois filhos e fortuitamente desempregado, foi aprovado em concurso federal e a vida continuou.

Eis que eram novos enfrentamentos, mas já ficava uma pergunta para ele próprio: será que já estaria velho para os padrões de trabalho moderno, ou ainda aguentaria o tranco?
Afinal, a labuta já o havia debilitado bastante, pois apresentava obesidade e a flexibilidade não era a mesma.

O engraçado naquele momento foram certos episódios. Em um deles, José estava iniciando um deslocamento de Jequié para Poções, na Bahia, na companhia de um cunhado(b), quando "b" questiona se "a" já havia realizado a inscrição para o concurso federal, no que foi rebatido que ainda não o tinha feito.

Aí, "b" diz-lhe sorrindo, que era aquele o último dia de inscrição. E "a" tomou uma decisão amalucada: manobrou bruscamente o seu velho Fusca 73 e retornou. Foi se inscrever, mesmo sabendo das chances duvidosas, pois não teria tempo para estudar e se valeria de sua base educacional pregressa.

E vejam o que é o destino: José foi aprovado em primeira chamada, sendo encaminhado para psicoteste e prova de aptidão física.

Então ele se entusiasma com a possibilidade de parar com sua atividade de vendas, que lhe tolhia o convívio familiar, pois passava dias a fio em viagens. E ao chegar no fim daquele ano fiscal ele entregou a pasta da representação comercial e foi morar numa pequena e aconchegante cidade serrana, chamada Itiruçu, que no tupi-guarani significa morro grande.

Ali, passou alguns meses, treinando e se preparando espiritualmente para o novo mister, o qual assumiria aos trinta anos de idade.

Foi também naquele lugar frio, pois fica a oitocentos e setenta metros acima do mar, que aconteceu algo inusitado para José. Ele só tinha cinco dias de estadia na localidade, onde alugou uma casa humilde, e precisou ir ao mercado.

Lá, ele foi caminhando, pois tinha vendido seu velho companheiro de viagens. Chegando junto à senhorita do caixa(c), perguntou se faziam entrega de compras, pois tinha visto na portaria do local uma velha bicicleta Monark cargueira. E (c) lhe respondeu afirmativamente.

Então, José lhe pediu que anotasse o endereço para a entrega, no que (c) retrucou que não precisa. E, intrigado, José perguntou o motivo da não necessidade do endereço. Quando (c) lhe falou o seguinte:
Não é o Senhor que chegou na cidade nesta semana? Que treina todos os dias, juntamente com a esposa, andando ambos com camisetas decoradas com folhas verdes e uma enxada agrícola, fazendo o percurso até a colônia italiana e retornando? Pois é, todo mundo na cidade já sabe que o Senhor chegou de mudança.

E ele caiu na real, acerca do novo estilo de vida, que é típico de uma comunidade singela.

Ali ele passou pouco tempo, mas foi um tempo que deixou marcas no seu imaginário, pois remonta o convívio social mais entrosado, resgatando a presença das pessoas nas portas e passeios em fins de tarde, em bate-papos, chás, cafés, jogos de tabuleiro e até breves saraus.

É interessante perceber alguém que, aos trinta anos de vida, pôde ter um currículo que abraçasse vinte e dois anos de trabalho, juntamente com a possibilidade de ter adquirido uma formação universitária, dentre tantos coisas mais que vivenciou, optando em se tornar um policial.

Incrível também, é ver que José tinha sido um professor humanista, fã de rock, jazz, samba de raiz, de MPB e de música clássica, e que vivia colecionando discos de vinil e vinhos, tocando violão, e era frequentador de bibliotecas, onde ciscava os livros de mitologia, história antiga e medieval, geografia, filosofia, ciência política, antropologia, astronomia e astrologia, adentrando num mundo de trabalho de ordem unida, hierarquia e obediência quase cega ao ditames impostos à tropa.

Toda essa base pregressa ajudou José a ser um diferencial entre iguais, mas também lhe trouxe infortúnios, pois teve que enfrentar uma estrutura corporativa vinculada estruturalmente ao poder institucional e à eterna busca por poder interpessoal, que é um dos maiores defeitos do ego humano, e que nos faz questionar o porquê de Pateta puxar a coleira de Pluto, se são ambos cachorros.

Mas os sonhos das pessoas podem suplantar as ocorrências mais diversas, pois não há dia igual a outro, como as águas de um rio também nunca serão as mesmas.

E foi assim que José não esqueceu situações interessantes que vivenciou, como no dia em que vestiu um terno, em pleno frio de julho, às "seven o'clock" na incrível Sampa, com o mercúrio do termômetro marcando 11° Celsius, e saiu da casa de um tio materno(d), sita no Lausanne Paulista, em plena zona norte, e tomou um ônibus coletivo com destino à praça da República, de onde iria ao Campus da USP.

Naquela época, ainda nos "anos oitenta" do século XX, o metrô só chegava até a Estação de Santana. e o deslocamento foi hilário, pois quando conseguiu chegar na "república" os termômetros digitais já haviam migrado para 39°C, e o mormaço era insuportável, mesmo para um nordestino acostumado ao calor catingueiro, pois ali a umidade do ar era um diferencial angustiante. E ele teve que ver os transeuntes se acabarem de rir do pobre coitado do "Zé", que tentava amainar o calor, desabotoando tudo que podia, para afrouxar a gravata, tirar o paletó, o cachecol e dobrar a camisa de manga, para tentar se readaptar ao calor.

Foi tanta agonia, que o "Zé" desistiu de ir à USP, e buscou ir para a Sé, onde seu velho tio trabalhava. E ao chegar lá, pode se recompor, adentrando numa repartição pública, onde visitou o seu tio.

Agora sim, vem a parte interessante, quando foi apresentado aos colegas do tio, e houve o seguinte diálogo:
(d) Meus prezados colegas, esse aqui é meu sobrinho baiano, estudante universitário, que veio nos visitar;
Foi quando uma senhora(e), após breve diálogo com o José(a), falou a seguinte pérola:
(e): "Seu Braga", seu sobrinho nem parece que é baiano, pois demonstra grande inteligência e educação cívica!;
Continuando aquela conversa, o tio(d) se manifestou, dizendo:
(d): Meu sobrinho é um dos meus orgulhos!
E o tio(d) assim falou, buscando contornar um possível atrito, caso o sobrinho José se alterasse ante a ofensa embutida no elogio, que devia ser oriunda de um certo racismo inconsciente, que advém de uma sociedade marcada por momentos de eugenia, preconizada pelas levas de europeus conquistadores ou migrantes que aqui aportaram, seja nos idos de 1500, na transferência temporária da família real portuguesa ou no pós treze de julho de 1888, que marcou o fim da escravidão explícita no Brasil.

Um outro momento engraçado nessa mesma viagem, foi quando José finalmente visitou o núcleo de pós graduação da Escola de Administração da USP e, ao lado de um colega da Bahia, ouviu do coordenador dos cursos stricto sensu a afirmação descontextualizada de que nordestinos não tinham chance alguma ali, sendo que um dos exemplos demonstrados por ele, de que poucos alunos conseguiam concluir a grade disciplinar do mestrado em um ano e meio, foi lhes apresentando três acadêmicos do Ceará dentro desse grupo vitorioso, o que contestou categoricamente a sua opinião.

Também houve momentos lúdicos, na Terra da Garoa. Em duas noites, José teve encontros gastronômicos. No primeiro, ele saiu com seu tio Pedro e sua tia Jacy Luna, num final de tarde, em direção da torre que guarda o restaurante mais alto daquela velha cidade: o Terraço Itália.

Ali, no alto do 41° andar, com visão panorâmica circular, que permite ver São Paulo de todos os ângulos, eles chegaram um pouco antes do lusco fusco, que marca a mudança da tarde para a noite, apreciando o pôr do sol, e provaram de filés à terraço, acompanhados de um vinho nacional de uva cabernet sauvignon. Haja dinheiro, viu, pois custou "os olhos da cara"!

Já em outra noite, repetindo a saída da repartição pública em que seu tio trabalhava, e em sua companhia, José também foi presenteado com a degustação de uma deliciosa pizza italiana legítima, na saudosa Cantina Delle Sorelle, que ficava no Shopping Center Norte, onde a sua memória gustativa nunca mais esqueceu. Nessa cantina o José tomou uma pequena reprimenda do seu saudoso tio, pois estava acostumado com as manias da Bahia, de comer pizza regada com maionese e catchup. E, quando ele perguntou pelos condimentos, Seu Braga lhe ensinou que uma boa massa só levava azeite de oliva.

E assim, deixando de ser um matuto das caatingas e matas nordestinas, José foi vivendo e aprendendo, não só marcando trinta anos de vida, mas também trinta anos ou mais de batalhas, vividas e enfrentadas, em escaramuças nas trincheiras, nas planícies, serras e montanhas que percorreu.

O certo é que Buda, Alexandre ou Jesus só estiveram entre nós até os trinta e três anos, que lhes bastaram para serem lembrados ao longo dos tempos, enquanto José, que foi apressado às vezes, perdurou sua luta de trinta anos, e o que mais o destino e o tempo lhe permitiram inferir ou gozar, pelos caminhos do Deus dará ou pelas esquinas que se cruzavam, a lhe saudar os dias de venturas e aventuras.

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Poeta Braga Costa ©2020
(10/02/2020)