O mito da luta entre o homem e a mulher pela posse do jakuí (poder)
No patriarcado há a supremacia do homem sobre a mulher, do masculino sobre o feminino, onde as atividades tidas como masculinas têm um valor maior do que as tidas como femininas. Com isso os valores do patriarcado legitimaram o controle da sexualidade, do corpo e da autonomia da mulher, estabelecendo e definindo os papéis de cada um dos sexos na sociedade, onde o papel desenvolvido pelo homem possui mais vantagens e privilégios do que o da mulher.
O patriarcado pode ser identificado em diferentes culturas e épocas, inclusive nas tribos
indígenas.
Na obra “Xingu: os índios, seus mitos” os irmãos Orlando Villas Boas e Cláudio Villas Boas, descrevem as experiências vivenciadas no Parque Nacional do Xingu. Da página 113 à 115 os irmãos narram o mito da luta entre o homem e a mulher pela posse do "Jakuí" (poder):
“As lamuricumá tocavam uma flauta chamada jakui. Tocavam, dançavam e cantavam todos os dias. De noite, a dança era executada dentro do tapãim [casa das flautas], para que os homens não vissem. As flautas eram vedadas a eles. Quando a cerimônia era realizada durante o dia, fora do tapãim, os homens tinham que se fechar dentro de casa. Só as mulheres se conservavam de fora, tocando, cantando e dançando, e sempre enfeitadas com colares, penachos, braçadeiras e outros adornos, hoje próprios dos homens. Quando acontecia um homem, por descuido, ver o jakuí, as mulheres imediatamente o agarravam e o violavam todas. O Sol e a Lua não sabiam de nada disso, mas da aldeia deles estavam sempre ouvindo as cantorias e os gritos das Iamuricumá. Um dia a Lua disse que era preciso ir ver o que as Iamuricumá estavam fazendo. Resolveram ir, e foram. Aproximaram-se da aldeia e ficaram de longe, olhando. A Lua não gostou de ver o movimento das mulheres: as velhas tocando curutá e dançando, outras tocando o jakuí, e outras ainda gritando e rindo alto. O Sol e a Lua, para ver melhor, avançaram mais e entraram na aldeia. As mulheres estavam em festa. Quando o Sol e a Lua iam chegando, o chefe delas disse para o seu pessoal:
- Não falem nada, senão eles vão fazer uma coisa qualquer para nós.
O Sol, logo na chegada, disse à Lua: - Não estou achando bom mulher tocar Jakuí. Isso não pode ficar assim.
Depois começaram a conversar sobre a maneira de resolver o caso, dizendo o Sol à Lua:
- Vamos fazer um horí-horí [zunidor] para por medo nas mulheres.
- Vamos fazer, então, e acabar com isso. Está muito feio assim.
Dito isso, saíram a preparar o horí-horí. Levaram um dia inteiro. Depois de pronto o zunidor, a Lua perguntou quem ia levá-lo contra as mulheres, para pôr medo nelas.
- Pode deixar que eu levo - disse o Sol. E passou a se enfeitar com braçadeiras de penas, penachos e outras coisas.
Depois de se adornar todo, seguiu no rumo das Iamuricumá. A Lua ficou esperando na aldeia. O Sol, ao se aproximar, começou a girar o enorme horí-horí que ele fez. As mulheres continuavam dançando, mas já amedrontadas com a zoada daquela coisa que vinha chegando. Quando viraram os olhos e viram o Sol trazendo e fazendo zoar o seu medonho horí-horí, ficaram apavoradas. A Lua gritou mandando as mulheres se recolherem dentro das casas. Estas na mesma hora largaram tudo correram para dentro. Os homens, por sua vez, saíram para fora dando gritos de alegria e se apoderaram dos jakuí. Vendo o que acontecia, a Lua falou:
- Agora está certo. Os homens e que vão tocar jakuí e não as mulheres.
Naquela mesma hora os homens começaram a tocar e a dançar no lugar das mulheres. Uma delas, que havia esquecido uma coisa no meio da aldeia, pediu, de dentro da casa, que a levassem para ela. Quando viu isso a Lua falou:
- Agora vai ser sempre assim. Desse jeito é que está certo. Mulher é que tem de ficar dentro de casa, e não homem. Elas vão ficar fechadas quando os homens dançarem o jakuí. Não podem sair. Não podem ver. As mulheres não podem ver o horí-horí, também, porque este é o companheiro do jakuí.
Os homens aprenderam tudo que as Iamuricumá sabiam: as músicas do jakuí, os seus cantos e danças. Primeiro, eram só elas que sabiam.”
REFERÊNCIAS
NUNES, César Aparecido. Desvendando a sexualidade. 7. ed. São Paulo: Papirus, 2005. p. 64-65.
VILLAS BOAS, Orlando; VILLAS BOAS, Cláudio. Xingu: os índios, seus mitos. São Paulo: Círculo do Livro. p. 113-115.