*Voo 1504

Voo 1504

Agora é tese acadêmica: não nasci para viajar de avião. Nos meus últimos quatro voos, mesmo sem me apresentarem grandes medos, eu desci surdo. A cada passo, a cabeça rimbombava: tum, tum, tum..., como se em cada ouvido tivesse entrado uma cuia d’água. Tenho plena consciência de que se Deus me quisesse voando, me teria feito nascer “brabuleta”.

Correndo do pico do Covid-19, que estava marcado, inicialmente, para o dia 7/4/2020, peguei um avião superlotado em Teresina para Aracaju, com conexão em Guarulhos. Até São Paulo, tudo transcorrera muito bem. A bronca veio na rota seguinte, quando a comissária começou os procedimentos:

– Senhoras e senhores, este é o voo 1504 com destino a Aracaju e conexões, sob a tutela do comandante Carvalho Neto e sua equipe.

Nesse ponto, outra comissária se encarregou de traduzir para o inglês:

- Ladies and gentlemen, this is flight 1504 bound for Aracaju and connections, under the supervision of Commander Carvalho Neto and his team.

Já fiquei bolado! Ora, um avião lotado de nordestinos, se ninguém tivesse entendido em Português, será que entenderia noutra língua? Mas o mais desastroso e engraçado veio em seguida, quando outro comissário, com sotaque carregado e característico, traduziu tudo novamente para outro idioma:

– Assunta aí, cambada de paraíbas, cabeças chatas, baianos, comedores de bode e jerimum! Esse é o voo sei lá das quantas com destino ao Inferno da Pedra e outros becos. O chofer desse troço é o compadre Carvalho Neto, fio de comadre Guiomar de Tarso Carvalho lá dos cafundós de Jaicós e seus capangas...

De repente, aquele charuto aéreo se transformou num auditório. Tinha gente que ria desesperadamente e outros que choravam.

– Nosso voo tem duração prevista de 2h45m e a temperatura lá fora é 28°. A Companhia Aérea G... agradece a sua preferência.

Outra vez, fiquei sem entender a relação da temperatura exterior com o voo. Como dizia muito bem minha avó: “Nada tem a ver o fi-o-fó com as calças, se tem a cueca no meio...!”

Estão pensando que as esquisitices acabaram? Pois sim! Havia um quarto tradutor andando pelo corredor, que só depois vim a saber que estava traduzindo em Libras, mas eu jurava que era dança do ventre. A criatura, toda cheia de trejeitos, mexia muito mais com as “cadeiras” que com as mãos, e aquilo poderia ser tradução em Escorpião, Sagitário, Lagartixa, nunca em Libras.

Deixarei de transliterar as informações para o Inglês, para evitar a maçada. Faço-o apenas para o nordestinês.

Nord.: –Acredita nisso não, bixim, lá fora tá um calor do cão! Essa carreira vai durar 2h30m. Eles aumentam, pra vocês pensarem que tiramos o atraso. A companhia Aérea Bola Murcha sabe que esse bando de mão de vaca só viaja com ela por falta de outra pior....

Port.: –Mantenham os cintos afivelados durante todo o deslocamento.

Nord.: –Assenta a bunda nesse tamborete e deixa a cilha bem amarrada, até a hora de apear.

Port.: –Em caso de despressurização, máscaras cairão, automaticamente, do teto. Use-as, conforme a demonstração que nosso agente apresenta.

Nord.: –Se você sentir falta de “fôrgo”, na mesma hora irá despencar daqui de riba essas caretas. Ponha nas ventas, do jeitinho das mungangas que aquele cabra está mostrando ali no meio.

Port.: –Caso tenhamos que pousar n’água, usem os assentos para flutuar...

Epa! – pensei eu! Logo eu que tenho dificuldade para boiar com uma câmara de ar, quem será que vai desgrudar esse banco para flutuar comigo?

E o tradutor nordestinês prosseguiu na sua tradução simultânea:

Nord.: –Num tô agourando ninguém, mas se esse diacho quebrar as duas asas, entupir o motor, faltar carvão e embiocar de venta pra baixo e cair numa lagoa, é bom rezar pra Padi Pedro, PadimCiço e Irmã Dulce. Se não flutuou aqui em riba, lá embaixo é que não vai flutuar mesmo. Oxe, repara se isso tem cabimento!

Port.: –Acima, estão os kits de sobrevivência...

Nord.: –No alforge, tem um pedacinho de queijo, uma cabaça de cachaça, uma banda de rapadura, um tiquim de farinha e uma quartinha d’água. Use sem gulodice.

Port.: –Em decorrência do coronavírus, nosso sistema de bordo está suspenso temporariamente, para não colocarmos em risco a saúde de nossos clientes.

Nord.: –Se você estava pensando que ia tirar a pança da miséria comendo cuscuz, buchada de carneiro e farofa de bode, pode tirar seu jegue do sereno, que as panelas daqui estão tudo “ferrujadas”. Quem comeu, comeu, o resto é desculpa besta!

Em dado momento, o Comandante falou:

– Equipe de bordo preparando-se para decolar, tenham todos uma boa viagem!

Nord.: –Simbora, cambada! Chegou a hora do pega pra capar. Quero ver quem é macho agora!

Graças aos céus, o voo seguia sereno, quando o comandante anunciou:

Port.: –Todos atentos, porque estamos entrando numa zona de turbulência.

Nord.: –Se segura, negrada, que tem buraqueira na estrada! Segura o cabresto do jegue, compadre Carvalho Neto, que o bicho tá dando coice!

Cerca de duas horas e meia depois, o Comandante tornou a falar:

Port.: –Tripulação iniciando os procedimentos de pouso.

Nord.: –Agora é que a onça vai beber na cacimba. Vamos ver quem tem sal na cumbuca!

Graças a Deus, o pouso foi suave como o de uma garça e deu tempo para ouvirmos, aliviados, as recomendações finais.

Port.: –Senhores passageiros, cumprindo nossa meta de pontualidade, chegamos cinco minutos antes do tempo previsto. A Companhia Aérea G... prima pelo que anuncia. Agradecemos a preferência e desejamos a todos uma boa noite. Caso alguém precise de ajuda, peça a uma de nossas comissárias. E não se esqueçam de seus pertences a bordo.

Nord.: –Atenção, meu povo, não se esqueça de seus teréns! Precisando de ajuda, se vire, que você não é tijolo. A Companhia Aérea Bola Murcha agradece a livre pressão, desejando um feliz ‘já vai tarde’...

De minha parte, espero que tenha sido minha última viagem de avião.

Eu vi e conto. São coisas do meu Nordeste de cabra da peste.