TABAQUEIRA SANTA
TABAQUEIRA SANTA
(em homenagem ao vovô Gilberto)
Conta-se que havia um padre em uma dessas localidadezinhas do interior do Ceará que era viciado em torrado. Explicando torrado, também conhecido como rapé ou, ainda, como tabaco, é fumo de rolo migado, acrescido de cravo-da-índia, ou canela, ou chocolate, ou ervas outras e cinzas de madeiras aromáticas, torrados e moídos ou pilados no pilão até se tornarem um pó finíssimo, que se aspira por uma das narinas, em quantidades tão mínimas que podem caber na ponta da unha do mindinho.
À hora do santo sacrifício da missa, era imprescindível ao reverendo que ali estivera sua tabaqueira devidamente carregada para que o santo homem de Deus desempenhasse e desse ao seu ofício o adequado seguimento.
Era uma leitura, uma cafungada, uma explicação, uma narigada, e, no meio do sermão, tantas narigadas quanto se estendesse sua preleção. A mão do padre deslizava em direção à tabaqueira de chifre de boi durante a homilia, e a narigada do torrado lhe vinha às narinas com tanto gosto quanto lhe escapava o fragoroso espirro provocado pelo pó finíssimo.
Certa vez, ao preparar-se para a missa, o padre deu por falta do seu torrado. Foi-se a suas tabaqueiras-reserva, e nada nelas havia. O homem santo quase foi ao desespero! O que faria? Não podia atrasar-se mais para a missa. E não podia rezar a missa sem o seu torrado. Não, era impraticável! “Sacristããão!” Seria o Benedito? “Sacristãããããããão!!!” E chegou um dos moços que o ajudavam na missa. “Meu filho, corra ali, na mercearia do Zé Quebrado, traga meu torrado, meu filho! Você sabe! Eu não rezo a minha missa sem ele!”
O jovenzinho saiu! Moedas numa das mãos, tabaqueira de chifre de boi na outra, ia quase a chouto! Logo na saída – aquilo só podia ser um milagre! –, um cachorrinho deixara um torrãozinho desses bem pretinhos sobre a calçada! Tão pretinho, lembrava tanto o fumo de rolo, a cor... e aquela textura, bem sequinho, tão fácil de desmanchar na mão mesmo, daria um pozinho tão fino!
O garotinho nem pensou duas vezes: evitaria a caminhada, resolveria o problema do padrinho e, ainda por cima, deixar-lhe-ia as moedas que o sacerdote lhe dera para proceder à aquisição do produto!
O moleque pegou o torrãozinho do cachorro com mais habilidade que nojo, levou-o à sacristia, amassou-o cuidadosamente até torná-lo um pozinho muito fino, provou o pozinho entre os dedos, encheu com ele a tabaqueira do padrinho e foi depositá-la ao alcance da mão do sacerdote, que já a escorregava, nervosa e viciada, em direção ao local onde deveria estar naquele instante a tabaqueira de chifre de boi.
O padre pregava sobre política, politiqueiros e politicagens. E a mensagem saiu-se-lhe assim:
– Meus queridos paroquianos, a política brasileira, hodiernamente... – e a mão encontrava a tabaqueira, colhia do torrado a quantidade necessária à narigada, levava a unha mindinha carregada à narina, inalava, soltava um estrepitoso espirro... e bradava – Hunrfff!!! É merda pura!!!
Lucas Carneiro
21mar.2019
1h33