Meu Filho Bill

Estudos em andamento revelam que os animais tem um sexto sentido, que antes dos desastres naturais ficam agitados. Esse fato foi observado em Brumadinho, antes do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, quando os bois que pastavam no local, ficaram visivelmente irrequietos e é claro que isso são casos recentes. Outros exemplos anteriores em outras partes do mundo são citados.

Para muitos o nome Bill é apelido e não é. Bill Laertte é meu terceiro filho na linha sucessória. Ele e minha filha Luciana fizeram teatro estudantil, como eu também fiz, sendo que Lu ainda fez dança. De alguma forma estamos ligados pelo mesmo cordão umbilical das artes.

Como os animais, eu também tenho uma hipersensibilidade para alguns infaustos, mesmo que perfunctoriamente. Alguns desastres antevejo-os de longe! Assim foi que relutei diante do desejo de ir a uma peça teatral onde meu filho Bill se fazia presente.

Época da Páscoa, ele, Luciana e amigos comuns iriam apresentar-se numa peça Paixão de Cristo, no colégio onde estudavam. Ele interpretaria os papeis de Lázaro e Judas.

Como sabemos, Lázaro é o único personagem do universo que já entrou na literatura morto e se tornou redivivo, vindo a morrer de verdade em Lárnaca, Ilha de Chipre, onde foram encontrados em 1972 restos de seu corpo. Isso, porém, a Bíblia não conta.

O Novo Testamento nos contempla com dois Judas e Judas Tadeu passou pela Bíblia praticamente sem deixar rastros, não tendo, portanto, relevância nas narrativas bíblicas. Assim, meu filho Bill só poderia interpretar o Iscariotes, traidor, que possui uma bibliografia tão importante quanto indesejável. Exatamente aí se alojavam minhas esquivas, porque o Bill não seria um Iscariotes qualquer.

Vaqueiro bom conhece seu gado pelo pisado, pelo cheiro, pelo batido do chocalho, pelo berro e eu conheço o Bill e suas traquinices desde a barriga da mãe. Era um menino irrequieto, cheio de palhaçadas, marmotas e mugangas. Nossa sorte foi que uma vizinha que estudava Psicologia na UFPI, um dia nos chamou e nos orientou a levá-lo a um psiquiatra. O menino tinha um parafuso solto e dois perdidos, não que fosse totalmente doido varrido, mas varrido e escovado. O relógio mental dele não batia com o marcador cronológico. O diagnóstico foi “batata”, na mosca. Depois de algumas visitas e medicamentos, Bill nos foi devolvido como curado. Curado? Curado coisa alguma, acho que ele voltou pior! Por isso eu não queria ir ver aquela peça, mas fui.

Tudo se desenrolava na lentidão de sempre, até que comecei a sentir calafrios. Jesus chegava à Betânia e recebido com os alaridos de Marta e Maria pela morte do irmão. Eu sabia que era chagada a Hora D do Dia D. No meu pensamento Lázaro não ressuscitaria e pra que pensei isso! Em casa de Nero palito de fósforo é fogueira! É só chamar pelo diabo e ele botar o rabo à vista.

- Lázaro, vem para fora! Disse o Cristo todo cheio de pose, diante de sua plateia e do que seria até então o seu mais portentoso milagre.

O silêncio era literalmente sepulcral e nada do tal Lázaro dar o ar da graça, nada de botar a cabeça de fora. Alguém comentara que ele poderia não ter ouvido. Como não poderia ter ouvido? Até quem estivesse a dez léguas de distancia ouviria! Pelo que senti, o Jesus era outro desatinado ao falar ainda mais alto, quem sabe, por adivinhar que passaria a maior vergonha de sua conturbada vida.

- Lázaro, fio da gota serena, "tu é"surdo? vem pra fora!

O povo todo prorrompera numa gargalhada uníssona e duradoura, com a atenção redobrada, os olhos vidrados na porta do sepulcro. Eu estava suando frio. Eu sabia que ele estava fazendo aquilo pra tirar Jesus do sério. Bem que eu não queria ir àquele espetáculo espetaculoso... De súbito, eis que sai o Lázaro! Contrariando o papel bíblico, onde saíra em pé lentamente, impedido pelas amarras do sudário, aquele Lázaro mais parecia um sapo cururu, caminhando acocorado, com as duas mãos pressionando o estômago, com uma dor de barriga imensurável, vinda lá dos quintos, das profundas... sabe-se de onde. Naquele deprimente estado, Lázaro continuava aos olhos de todos mais morto que ressuscitado.

Passado esse ato eu retornei para casa. A minha cota de insatisfação transbordara. Naquele ritmo, seu personagem seguinte, o Judas Iscariotes, seria bem capaz de não vender o Cristo, não se enforcar (vai que acontece de verdade!) e ainda sair como herói, cortando a orelha do soldado romano no lugar de Pedro.

São peripécias de minha família.

Eu vi e conto.