*O Cabeça de Cuia.
O Cabeça de Cuia
Eu tinha relutado, por muito tempo, em escrever sobre este tema, por saber, de antemão, que não escaparia de censuras, mas, especialmente, porque seria o mesmo que malhar ferro frio sem bigorna. Acontece que, recentemente, a escritora Aíla Maria Brito, de Cocal, no Piauí, escreveu o soneto “Cabeça de Cuia – Uma lenda” e eu me animei a fazer o mesmo.
A lenda do Cabeça de Cuia deveria ser mais divulgada, no que pese sua importância para a cultura do Piauí. Não sei quando isso surgiu, mas quando estudei Canto Orfeônico, a música do escritor piauiense, João Ferry (1895-1962), era um dos temas necessários pela tenacidade da Professora Cloris Passos.
Essa estória, sem muitas delongas, versa sobre um tal Crispim pescador, morador do Bairro Poty Velho, em Teresina, região situada na confluência dos rios Poty e Parnaíba.
Conta-se que Crispim pescou no rio uns curimatãs, deixou alguns para que sua mãe os preparasse para o almoço e foi vender os outros no mercado.
Logo em seguida, chega à casa de Crispim sua madrinha que morava perto dali. Ao ver os curimatãs, desejou comer os peixes, pois estava grávida. Em troca, ofereceu um “corredor de boi”, ou seja, o joelho do boi, muito rico em carne e tutano, que foi aceito de bom grado pela comadre.
Quando Crispim chegou do mercado e não encontrou os curimatãs, ficou furioso e, num átimo de total descontrole, atirou o corredor de boi na cabeça da própria mãe. Desesperada, a mãe o expulsou de casa e, praguejando, disse que ele se transformaria num monstro aquático, com cabeça de cabaça, e só se livraria do encanto, quando comesse (no sentido sexual) sete Marias virgens.
Ao chegar até a sua canoa ancorada no rio, Crispim pegou um caco de cuia que servia para retirar o excesso de água da embarcação, colocou-o sobre a cabeça, em forma de chapéu, e mergulhou no rio.
Começava, então, essa história que muitos chamam de lenda e que se perpetua até os nossos dias. Isso é o que eu sei.
Existem duas datas inesquecíveis em minha vida: uma, é o meu aniversário, e a outra, 13 de agosto de 1965, uma sexta-feira 13, em que passei um dos maiores medos de minha vida.
Era um mês de intenso calor e o rio Parnaíba estava repleto de cardumes de sardinhas. Eu, Valdivino e Tenente, três amigos da mesma idade, resolvemos pescar de anzol sem chumbadas. Já na saída, nos perguntaram se estávamos doidos, pois aquele era um dia impróprio para pescar.
Por aquele tempo, a Avenida Maranhão, que margeia o rio Parnaíba, só existia da Ponte Metálica até a Avenida Joaquim Ribeiro. Dali em diante, era um terreno natural, cheio de veredas. Do mesmo modo, a Avenida Nações Unidas também só tinha pavimento até o cruzamento com a Avenida Barão de Gurgueia, na Vermelha. Dali até chegar ao Porto do Granjeira, no Parnaíba, era rua de chão batido, sem muitas habitações e muitas quintas de capins e mangueiras. Foi exatamente aí onde tudo aconteceu.
O sol já estava se pondo, quando começamos a voltar para casa, embora tivesse muita claridade ainda. Caminhávamos em fila indiana, ao pé da cerca, que ficava bem perto do rio e, ao passarmos por debaixo de um pé de imbuia meio inclinado, cujas galhas alcançavam o rio, algo estranho me despertou a atenção. Os dois iam à minha frente, mas quando assobiei, eles se viraram e olharam para trás ao mesmo tempo.
Com o dedo indicador sobre os lábios, fiz um gesto de silêncio e depois chamei-os de volta, fazendo sinal com a cabeça, em direção ao rio.
– Vocês estão vendo o que eu estou vendo? – perguntei baixinho.
– Vendo o quê? Aonde?
– Ali, sobre as águas, debaixo das folhas de “maria mole”.
– Rapaz! Que diacho é aquilo?
Estávamos acocorados e eu, no meio, segurando-os pelos punhos, pois
temia que eles saíssem correndo.
– Não corre ninguém! Vamos ver no que isso vai dar.
Falei daquele jeito, só para mostrar quem era macho ali, mas por dentro, eu estava com o coração a cento e quarenta batidas por minuto.
– É o Cabeça de Cuia, cara! Vamos dar no pé. – disse um deles.
– Não corre ninguém! Tu “num é” macho não, cara?
De fato, nós não tínhamos dúvida alguma. Uma cabaça de colo, tamanho médio, parecida com uma moringa, com a parte bojuda para fora d´água.
O monstro estava a uma distância de, aproximadamente, oito metros de nós, numa pequena enseada entre a coroa do rio e as margens, e ali era fundo, tinha uns quinze metros de profundidade. Não se sabia como o bicho se mantinha naquela profundidade sem fazer movimentos. Mas tudo nele era muito bem desenhado: boca, nariz, orelhas e olhos avermelhados, que davam aspectos sinistros àquela cabeça totalmente careca.
Ficamos petrificados por uns vinte segundos, não mais que isso, sem bater pestanas, assombrados, quando, de súbito, o bicho começou a submergir
lentamente. Ao chegar à tona, já bem mais perto de nós, esguichou um jato d’água com a boca.
Nesse momento, passamos sebo nas canelas e pernas pra que te quero...
No seu poema, João Ferry diz:
“Se um dia, tu vires a cujuba subir
No meio do rio e depois imergir
Não é ilusão, é assombração...”
Pois bem, não era mesmo ilusão nem alucinação. Esses fenômenos não acontecem ao mesmo tempo para três pessoas distintas. Era real, aliás, real até muito além da medida.
Nessa destabacada carreira, acabamos perdendo parte das sardinhas. Do rio para nossas casas, dava uns dois quilômetros, tempo em que levamos relembrando alguns casos, como por exemplo, o desaparecimento de duas meninas no último mês, bem no local onde as mulheres lavavam roupa.
Não poderíamos afirmar que foram afogadas pelo bicho, nem poderíamos sair dizendo que o tínhamos visto, pois seria gozação na certa.
Por outro lado, bolamos um plano, para que as pessoas não se aproximassem das “marias moles”.
Saímos espalhando pelo caminho que tínhamos visto uma imensa cobra sucruiuiu (sucuri) naquele local. Ao mesmo tempo, nos comprometemos a não falar no Cabeça de Cuia pra ninguém.
Ah, como é difícil guardar um segredo desses! E, por isso, contamos. Infelizmente.
Daí em diante, sempre que voltávamos do rio, alguém nos perguntava:
– Viram o que desta vez? Viram a mãe d’água? Um disco voador? Ou a baleia encantada*?
Eu vi, nós vimos. Tempos depois, Valdivino foi com a família para Brasília, e não retornou mais à Teresina. Tenente ainda mora lá.
São coisas de minha terra.
*Quando eu era garoto, ouvi contar que havia uma baleia encantada que vivia debaixo da cidade de Teresina. A cabeça sob o rio Parnaíba e o rabo, sob o rio Poty. No dia em que ela se mexesse, acabaria com toda a cidade.
Mas isso já é um outro causo...