Memórias de Domingos
Sempre devagar; devagar, quase parando. Não tinha e não demonstrava presa, pois, "presa para quê", era o que dizia. Porém, caminhava para o mar; e ele sabia. Sempre em frente em direção ao mar, caminhava ele. Sorrindo ou chorando, contente ou carrancudo, havia vencido os despenhadeiros, desvencilhado das curvas, espraiado em meandros, despedaçado sua cauda contra os rochedos, porém, encontrou o seu caminho, o qual seguia firme. O mar sempre foi e sempre será o seu destino final. Lá morrerá, tanto suas alegrias, como tristezas. Tanto suas conquistas, como as desistências. Tanto seus amores, como as desilusões. Amores nem tanto, mas tudo, tenha sido minguado ou abundante, tudo irá parar no mar e por lá, fenecerá.
Às tardes sentava sobre o toco à beira-porta e espiava o movimento. "Movimento de quê", se perguntava. Talvez dos pássaros, porque nem as árvores saíam do lugar. Por ali tudo era paradeiro, e a companhia resumia no cão de focinho preto com uma estrela na testa que atendia pelo nome de "Chamego". Seu outro passatempo era a vaca "Primavera". E de fato a sua princesa trazia no corpo as cores da primavera. Foram muitos os litros de leite que aquela "senhora" de quatro patas lhe permitiu ordenhar; porque atualmente quem passa bem debaixo de seus pontudos ubres é o bezerro "Chifre de ouro".
Simples e tacanho de palavras, pouco dizia. E o pouco que dizia, refletia no pouco que sabia. Não esparramava o pejorativo, para não esparramar a negatividade.
Chegava à casa do amigo e imediatamente era recebido por uma sofá macio pela velhice e ondulado pela corcundez. Ajoelhava, fazia o sinal da cruz, pedia licença ao Santo pendurado no alto da parede e sentava sobre o receptor. Sentia-me tão em casa, que imaginava flutuar sobre um amontoado de penas de ganso. Uma televisão em preto e branco no alto desnudava o mundo. Desaforadas e importunadoras, as válvulas chiando o leite derramado, atrapalhava a nossa prosa. Pedia silêncio para a danada, que disparava gargalhar de mim.
Ao meio dia em ponto, o cuco disparava uma gritaria. Abaixava o volume dele. Chamado para a cozinha, a mesa posta convidava para o café pós saciedade de comida e sem mais prosa, na volta do dia, uma dormidela soprada pelos beiços.
Assim passava o dia, quando dava fé, o sino badalava a hora do ângelus. Caminhando insolitamente, passos vagarosos, porém obstinados, íamos ao encontro do pároco que nos benziam dos pés à cabeça. Embora nada dissesse, aquilo o refazia. Amizade igual a nossa, só daqui a cem anos. Confesso que estou até agora abalado. Incrédulo! Os sábados tem sido um martírio; e a hóstia já não é mais a mesma, parece até que foi batizada com o gosto amargo da saudade. Porque quem ama de coração, a saudade rege a sinfonia da perda.
O mar não é tão longe quanto ele imaginava e sempre dissera. Sobretudo, os mares são imensos e cobrem muitos territórios com suas águas; mas amizades puras, ternas e sinceras são poucas, minguadas e não passam de gotas de chuva desfeitas pelo vento. Certamente está é a velha contradição que cobre o homem de ilusões.