A Mulher Que Enganou o Diabo

Um dia, por voltas das oito horas da manhã, minha mãe me mandou que eu fosse correndo ver o que estava acontecendo atrás da igreja de São Pedro. Muita gente estava se deslocando para lá e retornando conversando um monte de baboseiras, que eu fosse tirar aquela conversa a limpo.

De nossa casa até o local eram três quarteirões em linha reta e saia na praça da matriz e para mim isso era um salto de pulga. Ao chegar lá, pela quantidade de gente, vi que não seria fácil encostar e pior que eu fora incumbido de fazer uma investigação de um caso que eu nem sabia do que se tratava. Contra mim também existia a conduta humana de gente grande não andar dando bolas pra menino e não foi à toa que quando perguntei a um senhor o que estava acontecendo ali, ouvi dele:

-“Quem muito quer saber mexerico quer fazer, vá pra sua casa que menino em casa ganha um tostão e na rua ganha um carão. ” Não me restava alternativa que não fosse me imiscuir entre as pessoas até chegar lá no olho do furação. Não foi sem muito esforço que consegui isso, mas também atiçado por aquilo que já se falava abertamente e era a maior noticia do pós-guerra: Alguém havia arrancado na noite anterior, um pote de dinheiro.

Pra mim, a notícia não poderia ter sido mais frustrante, quando vi, com esses olhos que a terra haverá de comer, de onde arrancaram o dinheiro. Atrás da igreja, próximo ao canto direito, havia um cupim de aproximadamente cinquenta centímetros de altura e sendo do lado da sombra à tarde, servia de assento. A minha raiva maior era porque, muitas vezes eu me assentei no cupim e dizia comigo mesmo: Aposto como aqui tem dinheiro enterrado. Agora, eu participando de uma desagradável ironia, tinha comprovada minha teoria.

São Pedro do Piauí, como já falei, era uma cidade pequena. Agência bancária era coisa para um futuro distante. Os negócios eram realizados com dinheiro vivo guardados em casa. Ainda se usava o escambo em alguns negócios pequenos. Tudo isso era facilitado com uma violência em nível zero. O máximo que se tinha notícias era de alguns poucos arruaceiros embriagados nas festas do interior. Guardava-se dinheiro debaixo do colchão ou enterrado.

Nas conversas de boca da noite nos terreiros, as famílias ainda falavam nas almas de pessoas mortas que tendo dinheiro enterrado, iam em sonho dizer aos seus familiares onde estava o dinheiro. Segundo as lendas, não se poderia usar instrumentos de ferro (Alavanca, cavador, picareta) para arrancar o dinheiro, ter-se-ia que os fabricar de madeira de lei. Caso fossem usados instrumentos de ferro, o dinheiro ou ouro enterrados também se transformariam em ferro. Isso era cláusula pétrea, todos sabiam desse código.

EU VI o cupim todo arrebentado, um buraco abaixo, de um metro de profundidade, cacos de um grande pote de barro e dois cavadores feitos de aroeira seca. Tudo ali, na minha frente, como se a zombarem de mim... Ao retornar contei tudo pra minha mãe, só não disse que eu “sabia” que naquele cupim havia um tesouro enterrado.

O mistério agora seria descobrir o felizardo que herdara tamanha fortuna. Pelo tamanho do pote quebrado o lucro fora doutro mundo. Comentava-se que não seria difícil desvendar, pois ninguém suportaria ganhar tanta grana para ficar com essa entocada, bastava que todo mundo ficasse “urubuservando.”

Eu não sei o porquê dessas coisas acontecerem sempre na minha rua, o certo é que na casa da esquina de nosso lado, morava “seu” Maneca de Gracinha. Maneca era irmão de Manuca, aquele que o boi matou. Gracinha era a enfermeira, que aplicava injeções a domicílio nas pessoas enfermas. Maneca fora uma das pessoas que eu tenho certeza de ter visto entre os que tinham ido ver o cupim do dinheiro. Dois dias após esse movimento, a casa dele passou o dia sem abrir as portas, o mesmo acontecendo nos dias subsequentes, aliás, não abriu mais. Quando a polícia foi chamada que abriram a casa, a surpresa não fora pequena: A família havia evaporado com todos os seus cacarecos, sem deixar rastro. Ninguém sabia de nada, ninguém vira nada, ninguém suspeitara de nada. Dois mistérios na mesma semana, numa cidade como São Pedro do Piauí era qualquer coisa de fantástica.

O cupim fora quebrado na noite de 15 de fevereiro de 1959, num domingo de carnaval. Essa data está bem viva em minha memória, pelos desdobramentos que virão a seguir. Passado isso, a vida da cidade seguiu seu curso no marasmo de sempre e o caso ficou esquecido.

Passaram-se vinte e dois anos, melhor falando em 1980, eu trabalhava na construção da BR-230 em Oeiras Piauí e entrei num grande armazém de cereais. Dei de cara com seu Maneca de Gracinha, só que por mim nada teria acontecido se ele, dono de uma memória fora do comum, não me tivesse reconhecido. Disse-me para minha grande surpresa que me conhecia e me perguntou se eu não era de São Pedro do Piauí, falou o nome de meus pais e só depois de um bom papo eu me lembrei de quem se tratava...

Todo o que será relatado daqui pra frente é de total responsabilidade de “seu” Maneca, que já deverá ter partido para o outro lado da vida. De minha parte prometo ser fiel na retransmissão dos fatos. Segundo ele, estava passando privações na época em que tudo aconteceu. Que durante três noites seguidas havia sonhado com um mesmo homem negro, impecavelmente vestido num terno de linho branco, que se apresentava montado num burro preto, formando um contraste difícil de ser esquecido. Nas três oportunidades perguntara se ele Maneca não queria mudar de vida. Assustado no sonho e pelo sonho, nada respondera na primeira vez. Quando despertou, contou tudo pra mulher, que lhe acalmou, dizendo ser apenas um sonho bobo que aquilo nada tinha de objetivo com a vida deles. Na segunda noite que o sonho se repetiu, acordou no meio da noite e falou novamente pra mulher, que daquela vez ficou pensativa e aconselhou que se voltando a ter o mesmo sonho, confirmasse, dizendo que sim, que estava disposta a mudar tudo. Na noite seguinte, quase não conseguira pregar o olho de preocupado e acabou por dormir de cansado. Como se tivesse um encontro marcado, o homem apareceu em seu burro preto e agora mais de perto dava para ver que ambos tinham os olhos vermelhos fogo. Confirmou sim, o homem sumiu e ele acordou e não conseguiu mais tirar tal ideia do pensamento.

Nesse ponto do relato ele me perguntou se eu tinha lembrança de um imenso pé de juá que havia perto do mercado novo. Claro que eu me lembrava. Era o local preferido para os feirantes amarrarem suas montarias aos sábados, dia de feira. Pois bem, disse-me ele, no dia 14 de fevereiro era sábado de carnaval, que pra cidade não tinha tanta importância. Ele fora à feira e ali, debaixo do juazeiro, no meio de tanta gente, ele encontrara personificado a pessoa do sonho. O mesmo homem, o mesmo terno branco brilhante, seu burro preto ébano e olhos de fogo. Pelo aparato, a impressão que tivera foi de que apenas ele estava vendo aquela figura estranha e isso era inteiramente inconcebível. A figura era de tal modo excêntrica que, se visto por outras pessoas, suscitaria não poucos comentários. O medo foi tanto que a vontade era de recuar, mas quanto mais fazia força nesse sentido, mais sentia que era impulsionado para frente. Foi ai que teve certeza que entrara numa tremenda enrascada. Seus pés eram plúmbeos no peso e amarelados na cor, mal se moviam, sentia-se anestesiado... O homem, que agora ele tinha certeza de que era um ser medonho e sobrenatural, foi quem puxou conversa em tom áspero e decidido:

- Agora você não poderá mais recuar, caso desista do dinheiro, o problema é seu. Tudo o que você precisa para mudar de vida está debaixo de um cupim branco... Arranque-o e se vire. Da hora em que você se apossar da fortuna, contando-se dez anos pra frente, eu virei lhe procurar e quero apenas cinco gotas do seu sangue ou de seu filho. Não adianta querer me passar um calote, que de gente finória eu sei todos os truques. Aonde você se esconder eu lhe encontrarei. Dito isso, evaporou-se lentamente deixando um forte odor de chifre queimado, mas que só eu sentia a ponto de me causar vómito repentino.

Como já se tinham passados vinte e dois anos, era-me lógico que alguma coisa teria acontecido no percurso, pois ele me dissera em seguida que, não era apenas as cinco gotas de sangue, mas o dono do sangue iria com ele também. Isso me levou a perguntar-lhe:

- Mas então o senhor passou a perna no diabo ou ele não lhe encontrou? Além disso, a senhor não tinha filhos,

- Encontrou sim, meu caro. Era muito dinheiro. Arranquei-o e transportei pra casa em dois sacos de estopa. Tudo aconteceu depois da meia- noite e por sorte ninguém me vira nem cavando, nem transportando. Parecia que estava tudo combinado. No dia seguinte, fui até a cidade de Água Branca e contratei um caminhão para fazer minha mudança dois dias depois, depois da meia-noite e tudo aconteceu sem que ninguém nos visse arrumado a mudança. Viemos direto pra cá, pois eu já tinha mesmo desejo de vir para Oeiras... Nesse ponto perguntei o que acontecera dez anos depois.

- Pois é. Como você deve lembrar-se nós não tínhamos filhos, minha mulher já estava passando para o período infértil, mas naquele mesmo ano ela engravidou e tivemos um filho, o menino nasceu normal, sem nenhum problema, mas não se desenvolvia na mesma proporção dos outros meninos de sua idade, era um pouco raquítico, tanto que os moleques amiguinhos dele lhe puseram o apelido de rato. Ainda bem que ele não se importou e todos nós levamos numa boa, nós mesmos o chamamos mais pelo apelido.

- Então, deram um drible no diabo? Perguntei.

- Calma... Aqui em Oeiras coloquei um armazém muito grande de cereais. Isso que você está vendo nem é a metade e como nós tínhamos tino pra comércio, evoluímos. Os dez anos de prazo que recebemos passaram-se como o vento. Passamos esse tempo todo manjando uma estratégia para nos livrar da enrascada, que já sabíamos embalde. A cada fracasso, maior era o arrependimento do trato e no meu íntimo, cada vez mais eu me enraivava com minha mulher. Por causa dela eu entrei no inferno...

- O senhor entrou porque quis. Tinha como não aceitar, disse-lhe eu.

- Respondi em sonho, mas porque minha mulher garantiu que conseguiríamos uma solução... O certo foi que findo o tempo, nós não tínhamos solução alguma, mas ele também não apareceu. Sabíamos que a qualquer momento o diabo meteria os peitos em nossa frente. Cada dia passava na velocidade de um minuto. Minha angústia aumentava e minha mulher cada vez mais calma, afinal eu iria para os quintos e ela ficava com tudo, claro que era isso...! Até que um dia, o nojento me apareceu em sonho para me avisar que no dia seguinte à meia-noite, eu e minha família o esperássemos na porta de casa.

- Quando foi isso? Perguntei.

- Não sei quais tipos de cálculos aritméticos utilizados, mas exatos onze anos depois, no dia 14 de fevereiro de 1970, num mesmo sábado de carnaval, também entre lua minguante e nova, na mesma hora em que eu arrancara o dinheiro, ele nos apareceu. Estávamos eu, nosso filho Rato e minha mulher bem ai na frente de casa, já o esperando. Minha mulher com uma seringa contendo o sangue do menino. Eu lhe confesso: estava morrendo de medo e mais ainda de ódio de minha mulher que preferia entregar o filho para o “imundo”, enquanto eu mesmo me entregaria, visto que o menino nada tinha com aquela trapalhada... De repente ele apareceu em nossa frente, a menos de três passos e não se aproximou e já foi despejando seu mau humor. Não estava mais de terno branco e sim um uma roupa toda preta, colada ao corpo como se fosse de laycra e pela primeira vez vi que o infeliz tinha chifres e pés incomuns, sendo um de pato e o outro de bode, numa sinistra combinação e por isso andava mancando. Disse-nos:

- Até que finalmente lhes apanhei! O ratão, o ratinho e a ratazana. Não sei eu qual de você é o mais velhaco. Vim receber o que é meu com juros e se pensam que vão me passar a perna me oferecendo sangue de galinha, estão enganados. Mas eu tenho uma surpresinha pra vocês, seus cretinos. Passe-me esse pires com o sangue, ordenou.

Segundo Maneca me contou, a mulher dele colocou no pires as cinco gotas de sangue, de sorte a formar as cinco pontas de uma estrela, segundo ficara combinado e que não me falara antes. Também não sabia ele a razão dessa ordem. Quando o diabo recebeu o pires soltou um sorriso de contentamento macabro, deixando à amostra os dentes muito semelhantes aos dentes de um serrote ou mais propriamente com os dentes de piranhas. Disse em seguida para o espanto deles:

- Sangue maldito de onde tu vieste?

Para espanto maior ainda foi ver o pires tremendo nas mãos do diabo responder:

- Vim do corpo do rato.

- Do ratão ou do ratinho.

- Do rato pequeno.

Nisso, o infeliz mostrando-se agradecido com o negócio realizado disse-lhes:

- Muito bem, a divida está paga, vocês não me devem mais nada e chamou o garoto: - Vamos embora rato.

Nesse ponto, dona Gracinha ajuntou as mãos em sinal de prece e disse bem alto: - Obrigado Nossa Senhora da Vitória.

“Seu” Maneca continuou:

- O diabo olhou espantado, quando de dentro do bolso da camisa do garoto saltou um ratinho, uma catita e o acompanhou fazendo: cri, cri, cri, cri, cri... vendo que tinha sido logrado, o diabo deu um berro tão grande que estremeceu o Morro do Leme ali em frente, para em seguida entrar com seu rato de chão a dentro, formando esse buraco onde colocamos lixo para incineração todos os dias. Graças a Deus nunca mais o vimos e espero que isso nunca mais aconteça com ninguém.

Se no momento em que escrevo isso, estou temeroso, imagine-se quando eu ouvia o relato. Mas ainda me faltava uma peça nesse quebra cabeça e perguntei por dona Gracinha e o garoto, que deveria ter uns vinte anos de idade.

- Nos separamos no ano seguinte. De todos os nossos bens eu passei pra ela a sexta parte. Fiquei com quarenta por cento de tudo. Ela mora em Floriano com nosso filho, onde tem uma boutique fina na Rua Getúlio Vargas. Somos amigos, nos visitamos e nada mais.

- Mas vocês se separaram por quê? Perguntei.

- Meu caro, eu posso não ser um gênio, mas não sou burro de carga. Você acha que eu iria ficar casado com uma mulher que engana até o diabo?

Eu vi, ouvi, acreditei e conto.

São coisas de minha terra.

Um Piauí Armengador de Versos
Enviado por Um Piauí Armengador de Versos em 29/10/2016
Reeditado em 31/10/2016
Código do texto: T5806513
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