Meu Cão Pataco

Não se poderia dizer a princípio que aquele fosse um cão de boa linhagem, aliás, afirmar que aquele quadrúpede tivesse qualquer coisa de boa, já seria prova de falta de senso crítico.

O bicho fora abandonado e vagava, no sentido lato do termo, como “um cão sem dono”. Unhas compridas, orelhas caídas e um pelo que dava dó, se é que se poderia chamar aquela estopa de pelo. Era somente couro e ossos e puxava da pata traseira esquerda, decorrência de alguma gratuita bordoada. Não havia quem quisesse o tal bicho em sua porta, rapidamente era enxotado e algumas pessoas supersticiosas o tinham como bicho de mau agouro.

Meu avô era pessoa de tão boa índole, que mesmo com uma centena de arrobas de exemplos contrários, preferia sempre acreditar no homem. Já que era assim, por que desacreditar naquele em que todos diziam ser do homem o melhor amigo?... Com a aquiescência de minha mãe o cachorro fora homiziado em nossa casa. Contudo todos diziam que seria pura perda de tempo, que o bicho não prestava para nada, que tinha preguiça até de dormir, que iria entupir a casa de pulga, que era feio desengonçado e que não valia uma “pataca furada”. Por causa disso e por ser macho, recebera um novo nome: Pataco.

Se a fé transporta montanha, o amor transportará uma cordilheira inteira. A princípio Pataco era desconfiado, mas aos poucos se foi acostumando e em menos de um ano de convivência, já era outro. Quem o vira não o reconheceria. Tinha agora um olhar brilhante, uns três centímetros de pelos amarelos e duas manchas negras, forte, ágil e uma docilidade de criança. Era elegante, com 65 cm de altura e peso de 29 quilos. Meu avô dizia que com carinho tudo se amoldava e neste caso era verdade. Do velho cão nada sobrevivera, mas ganhara um novo defeito: Pataco pensava que era gente. Dormia na espreguiçadeira, jogava bola e possuía um ciúme danado das mulheres da casa. Possuía pelo menos três tonalidades de latidos plenamente definidos para cada ocasião: um para chamar as pessoas, outro quando queria comer ou beber e um terceiro próprio de cão de guarda. Era agora motivo de admiração, seu porte atlético impunha respeito e acabou sendo o xodó da meninada nos banhos de domingo no Rio Parnaíba.

Foi por esse tempo que minha mãe resolveu mudar o nome do cachorro de Pataco para Ésquilo e foi nessa oportunidade que um veterinário disse que se tratava de um Pastor belga. Não era um cão para qualquer um criar, mas sobremaneira nos causava estranheza alguém abandonar um cão tão valioso como aquele.

Tudo ia bem, quando um dia um dos vizinhos, que antes não dava nada pelo cachorro, comentou que ele daria um bom perdigueiro. Foi o suficiente para meu avô protestar veementemente afirmando que aquele era um cão caçador de onça, não iria pô-lo a perder procurando nambu.

Acontece que de qualquer forma o germe da curiosidade já se havia implantado e corroía a mente de meu avô, que se pabulava de ter sido na juventude um exímio caçador. Um dia resolvera levar o cachorro para o interior e iniciá-lo na arte venatória. Havia, contudo, um grande inconveniente: a região era infestada de cascavéis e outras serpentes peçonhentas.

A primeira tentativa superou o imaginado. Juntamente com dois outros cães experientes, conseguiram pegar quatro tatus em três horas de andanças na mata, quando dois por noite já seria motivos de comemoração. Numa segunda expedição o resultado foi infinitamente melhor: Dois porcos queixadas e duas pacas... De retorna para casa, passaram pela feira e venderam parte do produto, arrecadando com isso um bom dinheirinho extra.

Estavam todos animados com as caçadas dos finais de semana e Ésquilo era de sobras o melhor cão farejador da região, até que veio acontecer um inusitado: Era sexta-feira da paixão e meu avô não arredaria o pé de casa por nada. Alheio a isso, Ésquilo estava impaciente, num entra e sai interminável, latindo e por vezes uivando como nunca, o que fez com que meu avô comentasse que “o bicho estava adivinhando coisas”.

Cão criado solto e livre, por vezes desaparece sem causar preocupações maiores, foi o que aconteceu, mas tudo mudou, pois no sábado pela manhã o cachorro não foi visto em casa, deu meio dia e nada, também não aparecera à noite causando-nos preocupações. No domingo de Páscoa, meu avô com outros três caçadores e seis cães saíram pra mata. Havia uma possibilidade de o animal ter sido picado por uma serpente e não resistindo estaria morto. Os cães logo encontraram vestígios e amiudaram os granidos na busca, já se sabia que seria encontrado vivo ou morto.

Quando fora encontrado Ésquilo estava mais morto que vivo, coitado do cão! Cortes vários pelo corpo todo, o pelo duro de sangue ressecado e não nos dava esperança de escapar. Pelo estado físico do animal já se descartara a possibilidade de ter sido atacado por uma serpente. Ninguém poderia imaginar o que lhe teria acontecido e o medo passou a cercar todos os caçadores ali presentes, pois havia um odor esquisito no ar. Algo muito sério inquietava a todos. Naquela época não existiam garrafas térmicas, usava-se cabaças no transporte d’água. Embora caído, com muito trabalho se conseguira fazer o cachorro beber. A primeira providencia foi improvisar uma padiola para transportar o cão...

Os outros cães encontraram a poucos metros dali, uma onça pintada com o dobro de peso e tamanho de Ésquilo, igualmente quase morta. Só então se entendeu a quantidade de mata revirada, como se tivesse acontecido um vendaval apenas naquela clareira. Dois monstros, cada um com suas armas, um a defender seu território, outro a defender sua honra haviam se atracado naquela densa mata. Pelo estado físico dos dois oponentes, concluía-se que a refrega não tinha sido desse mundo. Era de se esperar que nosso cão se não morrera, fora por milagre ou por uma tenacidade de fera. Nosso cão foi recuperado e morreu de velho em nossa casa, respeitado e amado.

Depois dessa, meu avô trouxe o cachorro para Teresina e nos proibira de fazer qualquer comentário sobre isso, até a décima geração.

São coisas de minha terra.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 10/09/2016
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T5756269
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