ESPIRITO DE PORCO!

Luís Fernando, um jovem antropólogo português considerado nos meios acadêmicos de seu país uma revelação das ciências sociais, encontrava-se no coração do Amazonas, em uma comunidade denominada Tamanicoá localizada no Alto Solimões, realizando um trabalho de pesquisa para concluir sua tese de doutorado. Era um expert em Sociedade e Cultura dominando com louvor o vasto campo da investigação científica que permeava o trabalho que logo iria defender na Universidade de Coimbra, Portugal.

Luís buscava na imensidão do verde compreender o processo de reafirmação contínua dos povos tradicionais da Amazônia através da oralidade de seus ancestrais. Ali se firmou durante três meses, convivendo com as peculiaridades histórico-culturais deste povo que muito bem o acolheu.

O jovem cientista abrigava em sua visão de mundo, várias correntes do campo de pensamento da Antropologia Cultural, o que expandia seus conhecimentos teóricos e lhe dava robustez e credibilidade aos seus discursos e trabalhos acadêmicos publicados nas mais importantes revistas científicas da Europa. Mas era também conhecido por ser cético as questões culturais providas por temas que davam vida as entidades folclóricas. Costumava busca nas ciências explicação a tudo, e vez outra, zombava dos fatos referindo-se a estes como simples falácias imaginárias.

Quando pequeno, a avó de Luiz Fernando costumava reunir os netos a beira do fogão a lenha que aquecia o ambiente, e depois do jantar, costumava contar histórias de lendas, tanto brasileiras, quanto lusitanas. Enquanto a maioria se amedrontava, outros simplesmente procuravam o colo da avó para se agasalhar do medo, o pequeno Luís costumava ficar inerte se mostrando sempre descrente, estático!

Em Tamanicoá a sexta-feira entardeceu com um forte e rápido temporal. Faltavam apenas dois dias para sua partida. Tinha finalizado a etnografia necessária e tudo que constava em seu cronograma conforme previamente planejado, fora executado.

Enquanto isso, Luís Fernando internalizava o sentimento de dever cumprido, e a sensação de voltar para casa promoveu-lhe no rosto a pintura de um sorriso amigável. Logo fez as malas, guardou todo o equipamento e, sem mais demora, como de costume, após o jantar, recolheu-se aos seus aposentos. Em sua rede atada aos pés da varanda da humilde casa a ele cedida, localizada a beira do barranco, procurou desfrutar do descanso merecido. Enquanto contemplava o majestoso Rio Amazonas, sob a brisa do vento verde espraiada pela enorme e luzente lua cheia, Luís Fernando adormeceu profundamente!

O sábado seria de descanso e duras despedidas. Ainda era muito cedo, o sol acabará de raiar timidamente por detrás do céu acinzentado deixado pela friagem não dissipada da noite anterior. Sentou-se, a beira do barranco ante de ir desfrutar do apetitoso desjejum matinal que dona Maria do Rosário, esposa do administrador do pequeno vilarejo, preparou especialmente para aquele dia.

Sob a sombra de uma centenária mangueira, Luís Fernando se dispôs a uma última releitura de um clássico da antropologia que carregava sempre consigo "Tristes Trópicos", obra esta que desde os tempos de graduação, já o inquietava. O livro do antropólogo Claude Lévi-Strauss, fundador da Antropologia Estruturalista, trazia uma série de relatos acerca de sua passagem pelo Brasil, quando o mesmo teve seu primeiro contato, por volta de 1930, com os indígenas do Novo Mundo. Era notório que a visão eurocêntrica, e até certo ponto colonialista do autor era compreendida por Luís Fernando pela própria contextualização histórica da época, assim como de sua visão de mundo. Nela, buscava similitudes, não da etnologia da obra, mas do próprio título, vez que em sua visão, intitulava o lugar que estava como "Fantásticos Trópicos" de tão grandiosa a exuberância histórico-cultural dos povos nativos quanto do próprio lugar!

Repentinamente percebeu uma aglomeração de pessoas se estabelecendo no pequeno porto da comunidade. Como sempre, muito curioso, desceu para ver o motivo de tanta afobação. Ao percorrer a escadaria rumo ao porto, viu que tinha um barco ancorado que até a noite passada não estava por lá. Logo ficou sabendo que naquela embarcação se encontrava uma família que tinha deixado para trás um de seus familiares. Até ai tudo bem. Então perguntou de uma senhora qual era o real motivo de tanta aflição. Ela, aparentando muito assustada, respondeu:

— Professor, o senhor não tá sabendo não? É o marido da comadre Raimundinha, lá do alto rio. Estão dizendo por ai que ele a deixou. Mas não foi por briga boba não. Eu sei que o senhor não vai acreditar, mas ela estava acobertada pela maldição do Espírito de Porco!

Mesmo cético a essa história, mil inquietações se desprenderam de seu imaginário coletivo, suscitando suas memórias acerca das histórias que outrora escutara na infante idade. Com um pequeno sorriso irônico, quase imperceptível, viu a oportunidade de vivenciar o inimaginável e procurar entender o inexplicável através da voz das ciências!

Após desfazer-se o alvoroço, Luís Fernando conseguiu se aproximar de seu Natércio, um homem franzino que segurava em seu colo uma criança aparentemente inquieta. Tudo indicava que ele era o responsável por toda a comoção vivida na comunidade. Ao pé de sua rede, atada no centro do pequeno barco, ainda muito assustado, seu Natércio se dispôs, após uma breve apresentação do antropólogo, dialogar a respeito do assunto que corria em espanto por todo o local. Sem perder tempo, passou a narrar o seguinte acontecimento ocorrido com ele e sua família.

— Meu amigo estou indo embora do rio Juruá porque lá aconteceu um desastre com minha família. Na minha comunidade “Canta Galo” eu sou conhecido por ser homem trabalhador e honesto. Lá, tinha minha família unida, mas dia desses, descobri que minha mulher possuía uma “mardição”, ela se transformava em porca, coisa inacreditável, né? Mas é verdade, seu moço!

Sem mostrar nenhum espanto, Luís Fernando simplesmente pediu que ele contasse toda a história para depois tirar suas próprias conclusões! Então seu Natércio continuou narrando sua malfadada experiência:

— Eu já estava desconfiado, pois todas as quintas-feiras, quando acordava lá pelas tantas da madrugada, sentia a falta dela, e sempre que estava ausente, ficava um bicho fuçando debaixo do jirau de nossa casa, fazendo uma bagunça que o senhor nem pode imaginar!

— Mas um dia, "seu primo", eu arrumei coragem e resolvi desvendar o mistério. Esperei por mais uma semana até a chegada da próxima quinta-feira. Neste dia, pela parte da manhã, mandei minha mulher pra roça com os meninos, e lhes falei que não poderia acompanha-los, pois deveria fazer um serviço na casa do compadre Tonho, do outro lado do rio, quase de fronte a nossa.

— No entanto, quando se foram, peguei a velha pá e comecei a cavar no terreiro de casa, um buraco bem largo e fundo. Depois cobri com galhos e folhas de palmeira para camuflar a bendita armadilha que fiz.

— Ao entardecer, percebi que minha mulher agonizava com a chegada da noite. Como sempre acontecia, logo ficou visivelmente desagradável, ranzinza, bruta, e cedo foi deitar. Percebi que ela suava bastante, apesar do clima frio trazido pelas chuvas de dezembro. O sinal de nascença no seu pescoço inchado parecia ter vida própria como se algo quisesse dele sair.

— Coloquei os meninos cedo nas redes para dormir, e fiquei deitado no chão, bem frente à porta de casa. Enquanto fitava olhar o alento, esperava que todos dormissem para poder agir conforme tinha planejado alguns dias. Mas, como feitiço, acabei pegando no sono. Não tardei despertar, como das outras vezes, com a tremenda baderna que era feita lá na casa de farinha. Levantei assustado e, quando procurei minha mulher na sua rede, já não me foi surpresa constatar que ela estava vazia. Corri para ver meus filhos, mas logo fiquei tranquilizado porque estavam todos dormindo serenamente.

Foi então que peguei minha espingarda, calibre 16, dirigi-me à porta para espantar a “coisa” na direção da armadilha. Aprumei o pau de fogo e dei dois tiros na ilharga do cocho da casa de farinha próximo à besta-fera. Neste momento vi que o sinistro animal tratava-se de uma porca, e, diga-se de passagem, uma porca enorme! Ao tentar fugir, no desespero, a “mardita” caiu no buraco da emboscada. Seu primo, a barulheira de seus grunhidos - hooinc, hooinc, hooinc - começou ecoar por toda a comunidade. A zuadeira era tão forte que eu pensei, será que ela se estrepou em alguma zagaia ou alguma outra coisa cortante qualquer? No entanto, seu primo, lá no fundo do buraco, eu tinha apenas colocado minha santa Bíblia juntamente com o terço benzido pelo Frei Marcos, o mesmo que tinha pertencido a minha finada mãezinha. Meu amigo, isso parecia está lhe tirando o couro a sangue frio.

— Apesar das minhas pernas tremerem mais que vara verde de tanto medo fui até a beira do buraco, e quando apontei a espingarda mirando no focinho da porca, para dar o tiro de misericórdia, ela olhou pra mim, e com a voz de minha mulher, em tom de desespero, começou inexplicavelmente a falar gritando: — “Natércio meu amor, hooinc, hooinc, hooinc, me perdoa! Eu não faço isso por mal não... Deixa-me sair daqui, hooinc, hooinc. Natércio, meu amor, hooinc, me perdoa, me perdoa..."

— Ah, “seu mano”, sou medroso mais não sou “leso” não! Quando criança, já escutava meus avós dizerem que com assombração ninguém brinca, nem se mete a conviver com ela, principalmente se está estiver encarnada em uma pessoa que amamos muito. Por isso, logo peguei todos os meus filhos, coloquei-os dentro da canoa e parti sem olhar para trás. Ainda pude escutar seus gritos enquanto avistávamos esta embarcação de recreio que nos acolheu, e nos levará até Manaus. Aqui vou trabalhando fazendo de tudo um pouco para pagar as despesas das passagens. Lá na Capital tenho um irmão que nos acolhera por algum tempo, até eu arranjar um “empreguinho” e levar a vida normalmente. Sabe “seu primo”, acho que fiz o certo, preservei a vida da minha mulher. Estou muito triste, mas não quero saber o que aconteceu por lá no outro dia, nem mesmo tenho intenção de voltar pra lá um dia!

— Sabe “seu primo”, não me arrependo do feito, mas carrego comigo uma grande preocupação. O Natinho, meu filho caçula, aquele “moleque” ali que está no colo do irmão mais velho, desde então, chora toda hora, dia e noite clamando pela mãe. O curumim não quer comer, não dorme direito e não se assossega. Mas minha maior angústia é saber que ele tem o mesmo sinal de nascença da mãe, também no pescoço. Estou com muito medo, pois segundo os mais antigos com quem conversei aqui no barco, me disseram ser, esse sinal, a dita marca da maldição do Espírito de Porco, a mesma que minha mulher carregava.

— Diga-me “seu primo”, o senhor que é um homem estudado e vivido, me responda, será que ele herdou “mermo” essa maldição ou sou eu que estou ficando doido?

Luís Fenando sabia que pela forma com que a história tinha sido contada, pelas feições das dores e angustias vivida e ainda presente em seu Natércio, assim como os fortes indícios das várias testemunhas oculares presentes, pela primeira vez o fizera titubear. Não era mais uma simples história, um conto folclórico narrado em livros ou por oralidade em rodas familiares. Ele próprio estava vivenciando-a. Mas como responder as inquietações de seu Natércio, se ele próprio não conseguia mais responder a ele mesmo o porquê de suas próprias dúvidas.

Sem saber da resposta - tanto quanto ele - Luís Fernando acabou ficando frustrado por não poder ajudá-lo. Permaneceram alguns minutos em silêncio, agradeceu sua atenção, desejou-lhe boa sorte, e retornou a sede da comunidade. Lá do alto suas preocupações centraram-se no futuro dessas pessoas que tiveram suas vidas modificadas pelo inexplicável! No fim das contas, por volta das 18 horas, o barco seguiu rio abaixo e nunca mais se soube dizer do paradeiro dessa família!

Em Portugal, Luís Fernando defendeu sua tese de doutorado, e com o passar dos anos se tornou um dos profissionais mais respeitados da seara científica e acadêmica. Mas sua maior experiência, entretanto, não mais se pautou pela cientificidade e academicismo, mas nas vivências reais buscadas na compreensão dos mitos e lendas folclóricas, as mesmas que mudaram sua vida e sua visão de mundo. Luís Fernando viveu na Amazônia uma experiência fantástica. A partir daquele dia deixou de ser cético, se tornou um novo homem, mas tolerante e sensível às inquietações dos mistérios da vida.

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Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 02/06/2016
Reeditado em 28/07/2016
Código do texto: T5654894
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