Um Susto Daqueles...!

O imortal acadêmico Coelho Neto nos brindou com um conto maravilhoso sobre um pracinha da Segunda Guerra. Perdera uma perna na batalha e no retorno fazendo uma adaptação rústica que produzia um incômodo som, ganhara dos meninos de uma escola primária o apelido de O Toc toc da perna de pau.

Reencontrei Lupércio, após muitos anos em Teresina portando uma prótese da perna esquerda. Graças às novas tecnologias não tinha o som nem os incômodos do primeiro caso. Era quase imperceptível o defeito, ainda assim era um defeito e me lembrei do ocorrido.

Era, salvo lapso, o ano de 1964. A Av. Barão de Gurgueia em Teresina só tinha calçamento de paralelepípedos até a Rua João Virgílio, logo depois da matriz de Nossa Senhora de Lourdes. Dali em diante inclusive a BR-316 com quem fazia junção, era de cascalho. Não havia pavimentação asfáltica. Nem me lembro bem para onde eu me dirigia na boleia de um caminhão, o certo foi que no Posto Fiscal da Tabuleta, encontramos um homem com um ataúde pedindo carona até a cidade de Demerval Lobão. Claro que o motorista gentilmente mandou que ele subisse com o caixão, pois se sabia que era uma emergência e prosseguimos viagem. Era início de inverno, o céu prometia chuva que não demorou a vir em gotas parcimoniosas. Na carroceria do caminhão, o passageiro para não se molhar todo, achou por bem se acomodar dentro do caixão, ele fechou as duas tampas e acabou por tirar um cochilo bom danado...

Outros passageiros foram subindo durante o percurso e entre esses Lupércio que como os outros, ignoravam a presença de uma pessoa dentro do esquife. Chuva miúda caindo, a estrada repleta de “costelas de vacas” causando uma trepidação desagradável. Isso favorecia o deslocamento do caixão de um para o outro lado, para trás e para frente. É plenamente compreensível que não seja confortável viajar com um caixão de defunto se movendo. O fato do caixão já incomodava por si só e o movimento dos passageiros para se livrar da indigesta companhia, era constante. A morte não é algo plenamente aceitável, muitos de nós têm cismas com o além, fazemos nossos próprios fantasmas, construímos nossos medos e não raro, passamos nossas experiências reais ou fictícias aos mais jovens. Não dá para de sã consciência dizer que somos totalmente imunes a esses acontecimentos. Isso era o que se passava entre os passageiros. Ninguém ali se dizia dono do caixão, nem sabiam para onde ele se dirigia. O primeiro a subir na carroceria já o encontrara... Conversa vai, conversa vem, todos ali de alguma forma sabia de estória de alma penada, de algum causo fantasioso, especialmente por serem do interior, onde esses casos são mais difundidos. Todos estavam com algum grau de tensão pelo bate-papo.

Tudo isso acontecendo no exato momento em que passávamos pela localidade que ficou conhecida como A Cruz do Cassaco, na BR-316, onde um infausto acontecimento seis anos antes, tirou a vida dos políticos Demerval Lobão Veras e Marcos Santos Parente. Nesse episódio morreram seis cassacos (piões de estradas) numa batida de frente entre um automóvel Ford Mercury e uma caçamba do DER-PI com dezesseis peões. Ao todo foram nove mortos. Embora uma coisa não tenha relação com a outra, vá entender isso!

Dentro do caixão, o rapaz que tirava tranquilamente uma soneca, acordara e escutava os rumores de conversas. Nascera com um problema na fala em decorrência de lábios leporinos. Sem se dar conta do que poderia produzir, botando uma das mãos para fora no momento em que todos viram uma das tampas do caixão levantar, com o caminhão a 40 km/h de velocidade perguntou com sua voz que mais parecia um rosnado: - Ainda tá chovendo aí?

Todos os que me leem já imaginaram os acontecimentos subsequentes. Eu estava na boleia sem me preocupar com chuva nem com quem ia sobre a carroceria. De repente ouvimos os gritos de desesperos e gente pulando para os dois lados do veículo. Ao todo oito pessoas pularam, atiraram-se desordenadamente o que lhes valeram escoriações e fraturas. Só não foi pior porque a rodovia não permitia maiores velocidades. Foi nesse acidente em que Lupércio acabou por ter uma perna amputada, infelizmente.

São coisas de minha terra.

Carolina Maranhão, junho/ 1984.

PS. Há duas semanas, para minha surpresa, vi circulando na NET

um pequeno vídeo com essa história, postado em Roraima, para mim é surpreendente que esse causo tenha tomado tamanha proporção.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 05/03/2016
Código do texto: T5564055
Classificação de conteúdo: seguro