*Muita areia para meu caminhão

Muita areia para meu caminhão.

Havia, em Teresina, um restaurante muito chique, chamado ‘La Muralha’. Embora ainda não se usasse essa expressão, era ‘top’. Até então, a população da cidade era do tipo “andorinhas”, ou seja, frequentava um determinado ambiente com assiduidade e, de repente, quando menos se esperava, alçava voo para outro canto qualquer.

La Muralha, portanto, era a bola da vez.

Uma noite, fui a esse restaurante com dois amigos, sendo que um deles era solteiro. Chegamos cedo, por volta das 21h, e demos de cara com uma figura feminina de tirar o fôlego. A moça estava sozinha numa mesa, lendo um livro, despreocupadamente.

Propositalmente, nós nos sentamos numa posição estratégica, de modo que, se ela se levantasse para ir ao toilette, por exemplo, passaria bem perto de nós. Caso fôssemos três homens solteiros, eu já sabia que estaria fora do páreo.

A mulher não era propriamente bonita, porque bonita não era mesmo um qualificativo adequado. Se ela estivesse no Maracanã lotado, à noite, e faltasse energia, ela haveria de brilhar tal qual um diamante ao sol. Deveria ter 1,70 m de pura elegância. Tinha um corpo esguio e ereto, seios médios e olhos negros. Usava um vestido preto, de alças, ligeiramente brilhoso e com um caimento perfeito, e calçava sandálias Luiz XV. Trazia uma maquiagem discreta e seus cabelos soltos, da mesma cor do vestido, iam até um pouco abaixo dos ombros. Tinha um sorriso encantador e as pernas... oh, que pernas! Eram brancas feito porcelana, fazendo um contraste perfeito com o vestido. Aquilo, na verdade, não era uma mulher e sim, uma tentação!

Quando eu disse que estaria fora do páreo, caso fosse solteiro, foi respaldado num dado nordestino. Cá por esses brocotós, homem não se aproxima logo de vez de uma mulher extremamente bonita. Como se dizia naqueles tempos, aquilo era um Saara de areia para meu caminhão. Sinceramente, era o tipo de mulher que a gente olha e diz: ‘Essa não é para o meu bico.’

Diaba ou deusa era para ser admirada à distância. Some-se a isso o fato de que eu era tímido, embora tivesse participado de teatro estudantil, mas enfrentar de cara aquela pantera, não era para um domador do meu tipo.

A outra possibilidade, que me parecia a mais plausível, era de que ela estava à espera de alguém. Uma mulher daquelas, até morta, seria capaz de atrair duzentos homens para cada alça do seu caixão.

Bem, quem não joga, torce. Eu estava fora do jogo, mas torcia por Adriano, meu amigo solteiro, mesmo sabendo que, de um a dez, as possibilidades de ele conseguir arrancar aquele tesouro, seriam zero. Adriano nunca fora nenhum deus grego, mas quando nascera, trouxera sete sacolas, cada uma contendo uma letra da palavra OUSADIA. Gostava de pabular, contar vantagens sobre suas conquistas, inventar romances extemporâneos, enfim, os casos que ele nos contava quase não tinham crédito e, por isso, eles entravam por um ouvido e saíam pelo outro...

Eu e Chico, o outro amigo, pensamos a mesma coisa: “Vamos jogar esse fila da puta lá no olho do furacão!...”

Pensamos e falamos concomitantemente:

– E aí, vai deixar barato? A mulher já sorriu pra você, logo que entramos, vai esperar que ela lhe chame pelo nome?

Para nossa surpresa, surpresa apenas não, para nossa indignação, a moça chamou o nome dele, com uma delicadeza de fada:

– Adriaaaano...!

Enquanto Adriano arregalava os olhos, Chico gritava baixinho:

– É gooooooooooool de plaaaaaca! Adriaaaaano, camisa número deeeeeez!

Adriano levantou-se, todo garboso, e dirigiu-se ao encontro do inimaginável.

Atendendo ao nosso chamado, o garçom se acabou de rir, quando lhe falei:

– Por favor, traga-nos duas taças de veneno, precisamos nos matar urgentemente!

Enquanto isso, na outra mesa, o papo já tinha evoluído para algo além de uma simples amizade, e tudo isso em menos de vinte minutos. E este era o real motivo de nossa velada revolta...

Foi quando os dois resolveram vir para nossa mesa, no mesmo instante em que meu amigo proferia um adágio irritante: “Porco ruim é que acha batata rasa!...”

Shirley, a moça, tinha uma voz ligeiramente grave e gestos finos. Em poucos minutos de conversa, já éramos todos amigos. Todos não, três amigos e um FDP traíra... Agora era que ele teria mesmo motivos para se vangloriar e bem na nossa cara, com o nosso incentivo. Ô raiva do cão!

Os dois namorados saíram antes de nós, o que nos causou mais um prejuízo, pois tínhamos ido no carro dele e agora teríamos que voltar de táxi. Isso tudo numa sexta-feira, por volta das 2h da madrugada.

Como trabalhávamos juntos na mesma sala, sabíamos que o encontro na segunda-feira seria inevitável. Claro que, se nós chegássemos às 6h, certamente ele já estaria lá nos esperando para contar mentiras, mas dessa vez, não teríamos motivos para duvidar.

Só que ele chegou mais tarde que o normal e já foi logo despejando:

– Vocês são dois FDP...! A moça era um rapaz. Vocês sabiam e não me avisaram.

– O quê...?!!!!!!! Repete, se tu fores homem! – exclamamos.

– Pois foi. Saímos para um motel e, lá chegando, tomamos uma cerveja. Foi quando ela começou a falar que eu poderia ter uma surpresa, mas dada à minha experiência, ela estava tranquila... Que ‘Shirley’ era seu nome de guerra, mas por desastre do destino, o tabelião teria posto no seu registro de nascimento o nome de ABC, Adriano Bitencourt Castelle, mas que também atendia por ‘Adriana’.

Nós dois estávamos de queixo caído. Queríamos esboçar um sorriso, mas o caso era grave. Além disso, uma coisa não batia, não fazia sentido.

– Como ela poderia saber seu nome? – perguntei.

– Não, ela não me conhecia. O que aconteceu foi que um cliente de uma mesa próxima lhe mandou um bilhete num guardanapo, perguntando-lhe seu nome e ela, simplesmente, respondeu verbalmente. Por uma incrível coincidência, era o mesmo nome que o meu e nós interpretamos isso como se ele me tivesse me chamado.

Ficamos completamente desnorteados. Como poderíamos tomar um baile daqueles? Um traveco desfilar sob nossas barbas, fazer um strip-tease sob nossas retinas e ninguém desconfiar? Voz, corpo, andar, maneiras sutis, tudo de mulher e não era mulher? Nosso medo agora era de que nosso amigo passasse por algum trauma de pistantrofobia.

No entanto, ainda nos faltava esclarecer uma dúvida:

– Depois disso, você dispensou a moça, certamente... – quis saber Chico.

– Rapaz, eu já estava no prejuízo, já tinha esgotado meu vocabulário cantando a moça e não poderia retornar insosso... Mas podem crer, voltei do mesmo jeito que fui, só que revoltado com vocês.

– FDP...! – gritamos nós, sem conseguirmos parar de rir. Duvido que você tenha deixado escapar essa...

São coisas de minha terra.