O MORTO/BENÇÃO ENCOMENDADO

Dentro da água barrenta daquele açude, no interior daquela cidade perdida no Estado do Ceará, um corpo estufado de homem pardo, vestido de terno azul e botas negras caras, boia.  Cena absurda, se considerarmos que no entorno do açude, só existe, terra seca, vegetação amarelada, alguns mandacarus sobreviventes, ossadas de cabras e vacas acinzentando o chão, poucos casebres de barro batido, uma lonjura um do outro, muita fome e desilusão, famílias unidas por poderosa estiagem e sofrimento.

Tarcísio pega seu jumentinho magro, os dois filhos maiores de sua prole de seis rebentos, Ezequiel e Malaquias, seguem juntos com baldes e panelas até o açude já quase seco para recolher água para a sua família. São poucos quilômetros, mais ou menos uns dois, até o açude, mas, seu jumentinho está fraco já não aguenta mais carregar tanto peso. Depois de se arrastarem até lá, carregando seus corpos cansados e fracos, o primeiro a chegar junto ao açude, foi Malaquias, que com um assovio aponta ao pai o corpo boiando, olham como se fosse a coisa mais comum, isso, até se aproximarem mais um pouco e perceber como o camarada estava trajado, não era gente dali. Ficaram pensando se reconheciam o homem, mas, a face já meio desfigurada e o porte, não lhes recordou ninguém que eles já tivessem visto passar por aquelas bandas, como isso era possível? Pensaram...

Como isso não era da conta deles, recolheram a água que puderam e retornaram para casa. Tarcísio comentou com Maria Severina, sua esposa, sobre o acontecido inusitado, corpo naquele açude não era novidade, de quando em vez, isso acontecia, mas com aquelas roupas de gente rica, nenhum. Maria Severina voltou aos seus afazeres, precisava dar de comer ao seu bando, pouca farinha e feijão ainda lhe restava, precisava fazer crescer os parcos pratos, água com farinha com mandacaru picado, era o que tinha, ainda assim, agradecia à Deus, pois na última estiagem perdera seus dois filhos pequenos de fome, economizando ainda daria para mais duas semanas, depois só rezando fervorosamente, pois trabalho naquele momento, por ali não havia.

Maria Severina, ficou matutando, sobre a história que o marido contara e na sua cabeça só pensava nas botas do falecido, até que poderiam servir para vender e comprar alguma farinha café, rapadura e um pouco de carne salgada, bem que eles careciam disso, o cara estava morto mesmo, não iria precisar mais das botas. De manhã bem cedo, depois de pensar a noite inteirinha, chamou Tarcísio e contou a sua ideia. Tarcísio olhou espantando para a mulher, e disse
- Esconjuro isso há de ser pecado mulher!
Maria então falou
- Se você não for, eu mesma vou, não aguento mais ver os meninos com fome, nem trabalho tem por aqui, o que nós vamos fazer?
 
Tarcísio pensou, era não era muito bom nisso, a mulher é que normalmente tomava as decisões, ele apenas cumpria os mandos dela, êita! Mulher tinhosa a sua. Melhor fazer o que ela queria, pensando bem, para que o camarada havia de querer as botinas, deixou Severina com os meninos, pegou um pano, um facão que colocou nas costas, preso ao cós da calça, um pouco de farinha e um cantil com água barrenta, então, partiu para o açude, ia pescar o defunto e lhe tirar as benditas botas, para depois de uma caminhada de pelo menos cinco quilômetros vendê-las e trazer o que a mulher lhe pedira. Cumpriu a sua tarefa, pescou o falecido, tirou-lhe as botas, e viu que no bolso do terno tinha um saco plástico, puxou-o e quase caiu para trás, bem enroladinho estava um maço de notas, não era pouco dinheiro, olhou para os lados todos daquele lugar, ninguém à vista, demorou um pouco para acreditar no seu achado, que homem seria aquele meu Deus?

Puxou o corpo para fora do açude totalmente, tratou de começar a cavar uma cova rasa, revistou os bolsos, não havia nenhum documento, só aquele dinheiro abençoado, a camisa do falecido e as calças dava para aproveitar, mas, o terno parecia caro, melhor deixar para lá, coçando a cabeça, tentou pensar como a sua Severina, ela saberia direito o que fazer, ele era tonto mesmo, resolveu guardar o dinheiro e a camisa, colocou tudo dentro de sua própria camisa, enterrou o corpo, bem enterrado com o paletó, a roupa de baixo e cinto, patinou por cima para ficar tudo bem assentadinho, fez de joelhos uma oração para a alma do falecido e em agradecimento por aquela benção insólita, terminando, voltou para casa, Severina saberia o que fazer.

Tarcísio nem pensou em água e farinha, queria chegar logo em casa, tão aflito que estava. Chegando, chamou Severina para o lado de fora, contou o que encontrara e o que fizera, ela logo se atirou ao chão dando graças e chorando suas lágrimas de sertão, assim que se acalmou, começou a pensar de cócoras ao pé da porta da casa, ficou assim por quase uma hora, então decidiu, não iriam gastar o dinheiro todo, só um pouco, aquele valor que Tarcísio encontrara no bolso do falecido, daria para mais de um ano, era melhor garantir o futuro e não chamar atenção do povo na cidade. Resolveu ir até a cidade com Tarcísio no dia seguinte, à noite, depois de se alimentarem e rezarem, foram dormir, logo cedo comeram, alimentaram o jumentinho com uma generosa porção de mandacaru, pirão de farinha e água, levaram cantis com água e um pouco de farinha. Então, deixando ao filho mais velho Ezequiel o cuidado com os irmãos, deram um prato bem cheio de pirão de farinha e água para cada um, partiram.

Na metade do caminho pararam para comer e beber água, deram um pouco mais de água ao jumento e seguiram o restante do trajeto até a cidade. Lá chegando, passaram na venda, pagaram parte da dívida que tinham com as notas bem amassadas e enquanto Maria Severina fazia as compras, Tarcísio foi comprar numa outra loja uma pá, dois baldes grandes e tomando uma talagada de pinga, ouvir as conversas no botequim, para saber se alguém comentava sobre alguém sumido por aquelas bandas, tinha uma mulher vendendo pirulitos, resolveu levar um para cada filho, eles mereciam, não tinham nenhum agrado há muitos anos, pobres meninos do sertão. Conversa vai, conversa vem, nada se falou sobre sumiço de gente, comprou meia garrafa de pinga fiado e voltou para junto de Severina, que fez uma compra boa e bem pensada, nada que chamasse muito a atenção, ela comprou, um pouquinho de cada coisa:

- Café, rapadura, farinha, feijão, três galinhas, um galo, um pão grande e redondo, um pedaço médio de carne seca, macarrão, luvas e querosene para os lampiões, sal, um saquinho de pó para refresco, uma lata de leite em pó, fósforos, um pouco de milho para as galinhas, um pouco de ração para o jumentinho, três cebolas e três cabeças de alho, avisando ao vendeiro que, no mês seguinte, voltava para pagar a outra metade e talvez mais um pouco, pois a madrinha do menino mais novo ia levar um dinheiro de presente para ele, então, ficaria tudo certo, até o marido também arranjaria mais um trabalho, o vendeiro disse que ela não se preocupasse, pois sabia, eles eram gente honesta e nunca deixavam de cumprir os seus compromissos, com a cadernetinha da venda dele. Se despediram, penduraram alguns sacos no jumentinho, outros foram nos ombros deles. Passaram de novo no botequim, Maria Severina e Tarcísio dividiram um guaraná e foram embora para casa.

Quando chegassem seria uma festa no sertão. Severina resolveu que iria preparar para todos, um macarrão com farinha e carne seca, os meninos teriam um refresco ralo para beber, além de partilhar os pirulitos, não todos, senão acabariam rápido demais, essa noite teriam muito para agradecer à Deus.
Quando passaram pelo açude, olharam para o lugar onde Tarcísio havia enterrado a benção falecida, rezaram pela alma do morto e seguiram rápido para casa, já anoitecia quando chegaram, os meninos menores estavam dormindo, só os dois mais velhos estavam acordados e espera deles, viram a fartura que eles trouxeram e agradeceram à Deus muitas vezes pelas bênçãos recebidas, estranhamente é verdade, mas, benvindas. Como já estava tarde, os pais cansados, o próprio Ezequiel, disse que a mãe só fizesse o que pretendia de comida no dia seguinte, nessa noite comeriam o pirão de farinha e iriam dormir, no dia seguinte fariam festa junto com os outros meninos, a alegria seria maior, principalmente a dos pequenos. Tarcísio então, deu um pouco de água farinha e ração para o jumentinho, colocou as galinhas e galo no cercadinho, pôs água, um pouco de milho e mandacaru picado para eles, ele e Severina, comeram o pirão e foram dormir, pela primeira vez em muito tempo, pelo menos quatro pessoas daquela família tiveram sonhos mais suaves.

Na manhã seguinte, os pequenos viram nos armários, alguns sacos fechados e pensaram, teriam o que comer por alguns dias, já estavam felizes com isso, beberam água e foram brincar lá fora, acharam as galinhas e ficaram mais felizes ainda, pediram para a Malaquias picar um pouco de mandacaru para que eles as alimentassem e o irmão rapidamente fez a vontade deles, nada falando sobre as compras que os pais haviam feito, o café da manhã seria uma surpresa para eles. Quando a mãe os chamou para dentro, os gritinhos de alegria eram um bálsamo para os ouvidos de Maria Severina e Tarcísio, na mesa humilde tinha, um pedaço de pão, mingau de farinha com leite e uma caneca de café ralinho adoçados com um pouquinho de rapadura para cada um, eles estavam tão felizes que ao invés de comer ficaram olhando as maravilhosas surpresas à sua frente, logo o efeito da surpresa passou e comeram com gosto e bem devagar, saboreando as delícias. Deram muitas graças a mais ao Senhor Poderoso, quando Severina avisou que teriam, macarrão com carne seca e refresco de laranja para o jantar, nada de comer tudo de uma vez, com o café reforçado bastaria uma boa janta, hoje já tinham fartura até demais.

Quando foi alimentar as galinhas, mais uma benção Ezequiel encontrou, uma galinha colocara um ovo, correu logo para entregá-lo à sua mãe que prometeu cozinhá-lo e bem picadinho, o colocaria junto com o macarrão do jantar, eram mesmo abençoados. Enfim, naquele fundão de mundo seco e árido, um morto/benção, jazia bem encomendado, uma família de oito pessoas teve sonhos lindos, e o dia amanheceu, com sol forte e brilhante, como sempre, mas, com uma verde esperança no ar. Pelo sim, pelo não, acreditei nesse causo, muito bem contadinho, entre pingas e cervejas, por um vendeiro lá do sertão do Ceará.

 
Cristina Gaspar
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2015.
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 30/07/2015
Reeditado em 31/07/2015
Código do texto: T5329529
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