Capa de COSTELA no espeto

Século XXI. Ano 2015. Mês: maio. Quarta feira. 14 horas. Temperatura infernal acima dos 35o C na capital dos Paulistanos. Greves, buzinas, ambulâncias, montoeiras de lixo espalhados pelos cantos das ruas, gatos afeminados nas esquinas miando a penúria de não ter nascido raparigas, corre-corre de sapatos e gravatas, mariposas arrebitando as saias até o umbigo exibindo o que vai do sagrado ao profano; atores, coreógrafos, bailarinas e figurantes postados de frente às câmeras e diretores encenando a peça de teatro que entrará em cartaz somente em 2029. Futurismo demais para os dias de hoje. Multidão de pessoas ao redor. Alegria esfuziante.

Debaixo do Minhocão, mais precisamente nas imediações do Largo do Arouche, dois amigos (supõe-se que sejam) apenas de calção e descalços se encontram e bêbados pela felicidade, enlaçam-se um ao outro num longo e apertado abraço e deixando-se levarem pelo proseado esquecem (se é que em algum momento se lembram) da vida. Antes de ancorar os pés em São Paulo, estavam no corte da cana pelos lados de Ribeirão Preto e com o fracasso da fabricação do álcool, migraram para capital. O saudoso encontro reinava para lá do paraíso eterno e sagrado. Uma felicidade só compartilhada a dois.

- Ôôôôôô cumpadi, quê sastifação mais sastifeita ver ocê por aqui respirano! Retado do cabruncu! Que coisa mais danada de boa! Encontra um amigo como tu é o mesmo que mandá uma lapada de cana pro peito! Desafoga as mágoas! E cumadi Maricota, como tá?

- Antes de quarquê coisa, Maricota é a mãe. Tô morando por aqui cumpadi, na rua Aurora, 69; no primeiro andar. É tudo de bão. Treme tudo a toda hora, a todo minuto. Prá quem gosta de sossego, tá recomendado.

- Mais rapaz! Frequento aquele lugar direto. Prediozinho confortave e aconchegante. Como a vida é: um em cima do outro e agente não sabe quem está em baixo; quando não, igual 96: um prá cima, outro prá baxo. A posição é de dodio e exige destreza de cueio; mas o resurtado é porreta de bão, porque faz um zoio oiá o otro! Chega ficá zaroio!

- Em cima do diacho, cumpadi! Ocê saiu da usina na mesma leva que eu, ou foi em otra?

- Sabe que num sei! O que sei é que fui! A crise foi braba, mas aqui as coisas é bem mais mio de boa. Levá uma vida mais sastifeita de sastifação é o que alegra o coração.

- Verdade verdadeira, cumpadi! Por isso que chamavam ocê de PCC: Poeteiro do Corte de Cana, porque ocê fazia cada verso que lumiava mais que bico de candiero apagado em prena luz do sor. Era fumaça e fulige pru ar e ocê atrás da toça de cana a poetá!

- Sempri gostei de tu, porque ocê é mais gozado que o gozo de gozá! O cordel alegra e disperta o cabra dessa rotina mardita. Como o povo fala má da vida, nê cumpadi? E isso dá o que falá...

- Como nóis é cumpadi, mesmo num sendo; agora ocê é conterranio do peito da gema. Sujeito de Ventos Levados. Mudano disso para aquilo, o conterranio já comeu? De vez em quando lembro da buchada de bodi que o vei fazia...ôô coisa boa dos diachos! Ocê imbuchado de bodi é campeão e é a única saudade que tenho dos tempos de usina. Cumiduria boa! Era um buchu pegando pesado no otro buchu, e aquilo transformava numa buchada virada no bodi! Era cumê e pacoti arria!

- Rapaz, num comi não, mas ocê podia ir comê lá em casa...estou levando uma capa de custela, daqui ó... – e levou a mão na zoreia.

- Capa de custela?

- Isso! Daqui ó... – repetiu o gesto. Prosseguiu: Vô prepara com aio, pimenta, sal e bastante cuento. Vai ficar dos deus.

- Capa de custela?

- Mais cumpadi, deixe de viadagem home, capa de custela, sim! Deu prá o dá de banda, agora? Vi mata o boi...ô a vaca, isso é a única coisa que nun sei; mas que é carne veumeia isso é!

- Mais cumpadi, que coincidença, tumbém tô levando uma carninha no emborná. E é capa de custela. A deferença que num vi mata não!

- Vô ferventa bem, ranca o coro direitinho e limpa a capa.

- Tirá a capa da custela?

- Pois sim! Rapaz, como advinhô!

- Conterranio, mudano de catinga do sertão para largato do agresti, tô estranhando: hoje tá um paredero danado aqui nesse lugá. Será que morreu algum famoso?

- Não conterranio, estão comemorando o boi, ô a vaca que mataru. Tá todo mundo levando capa de custela prá casa.

- I é?

- Num tem o boi no rolete, hoje é o dia da capa de custela no espeto. Que mal lhe pregunte, e a Maricota como tá?

- Depois desse proseado, num esqueci não, Maricota é a mãe!

- Quê festa boa é essa homi? Podia ser assim todo dia! Lembra, ô num lembra o Norte em época de leição, conterranio? Os senhô do engenho e das terras entrava com a linguiça e o espeto e nois fazia a festa!

- Verdade verdadeira!...nois, homi, muié e as criança caía prá drento de calça e tudo e num tava nem aí!...

Motivados pelo dia da capa de costela no espeto, devido a matança do boi (ou vaca como disseram) em praça pública, saíram gargalhando e enaltecendo a sorte pelo feliz encontro em pleno Largo do Arouche, São Paulo. Pelos gestos labiais iriam costurar a emoldurada capa de costela no leito de algum hospital; pois estavam numa sastifação muito da sastifeita. Motivos é o que não faltavam para tanta alegria, afinal o quadro com as fotos de ambos também fora exposto na festa.

- Estão sirvidos a cumê uma nesga de capa suturada da custela de Adão?

- Mais conterranio, se ocê num fala, num lembrava seo nome de baião de dois de jeito nem um!

- E nem de otro. Tiau conterranio. Vô drumí, o calento da nestesia tá chegano rombudo.

Se for capaz,

sorria para um bom dia!

PA

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 29/04/2015
Reeditado em 01/05/2015
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