Minha Vaquinha Condessa.

O universo dos avós concernente a seus netos é algo tão inexplicável que beira à ficção. Hoje sou avô e tem momentos em que me sinto um bobalhão diante dos meus netos. Penso que essa mesma sensação meu avô sentiu diante de mim.

Lembro-me como se fosse agora, mas eu deveria tem entre seis e sete anos. Brincava à tardinha na porta de nossa casa em Teresina. Em dado momento, vi meu avô Rosendo, ainda distante, conduzindo um boi, pelo cabresto. Chamei minha mãe aos gritos, que, ao me atender urgente, ficou observando aquela cena ainda não experimentada antes. Quando ele chegou, eu fui o primeiro a interrogá-lo:

-Vô de quem é esse boi feio...?

Realmente, era um animal nada bonito. Se tirassem os chifres e o rabo, acabava-se o boi. Sem raça definida, conhecida como gado “pé duro”, cada chifre tinha pra mais de metro. Esquelético, sujo, babando feito um cachorro louco, mais morto que vivo. Se comprado, quem o vendera estava se livrando de um incômodo e quem comprara adquirira problemas a perder de vista.

- É seu... E tem mais, não é um boi, é uma vaquinha. Ela está prenhe, em breve você terá um bezerro.

Como poderia um animal daquele porte emprenhar? Que Deus me perdoe pela sem comparação, mas hoje me faço a mesma pergunta com referência àquelas mulheres etíopes que vivem segregadas, sem o mínimo do mínimo, do mínimo para escaparem da morte, como conseguem engravidar?

Nossa casa tinha um quintal grande, mas não adequado para criarmos uma vaca e, depois, também não tínhamos pasto. A ideia de meu avô dentro dos limites do absurdo, havia se superado. Ademais, eu não queria aquele boi de forma alguma. Detestei o presente em gênero número e caso, e, embora presente de avô tenha seu “quê” de especial, eu nem saberia o quê fazer com aquele bicho... Com a fome que ele estava, engoliria minha comida com prato e tudo de uma só abocanhada, conjeturei comigo mesmo.

O boi, ou melhor, a vaca era um animal dócil, mas, nem por isso, deixava de ser perigoso, qualquer movimento brusco poderia acidentar-me. A vaca dormira no quintal naquela noite. Meu avô comprara capim, que fora devorado numa avidez desenfreada... No dia seguinte fomos eu, ele e a vaca a uma quinta nas imediações do campo de aviação, onde ela ficara num pasto alugado, juntamente com outros animais.

Três meses depois, quem visse a vaquinha não reconheceria nela aquele espectro antes visto. O couro brilhava, os olhos brilhavam, gorda de fazer gosto e os úberes fartos, pronta para parir. Parecia mais mansa ainda e eu já gostava dela. Comia milho na mão da gente. A cada três dias eu ia com meu avô ver a vaquinha que ainda não tinha nome.

Chamá-la de Vaquinha já estava bom demais, contudo, meu avô achava que eu deveria dar um nome e me expos um monte desses, dos quais escolhi Condessa, por causa dos contos infantis. Meu avô me falara que o nome imprimia um caráter ao seu dono e não apenas isso, como muitas das vezes o seu destino. Essa eu queria ver! Eu pagaria pra saber qual o conde que iria casar-se com minha vaca.

No futuro, a vaquinha pariu um lindo bezerro, mas meu destino de fazendeiro estagnara aí, devido a um fato especial. De nossa casa a quinta onde a vaquinha estava não era perto, mesmo assim, passamos a ir lá a cada dois dias pela manhã cedo, quando meu avô ordenhava uns 300 ml para eu beber “in natura”. Eu gostava daquilo, leitinho quente tirado na hora, diretamente da fábrica, que ainda me deixava um bigode de espumas. Foi por esse tempo que veio a secar o reservatório d’água natural que havia na quinta. Estávamos no mês de agosto, a temperatura elevada e o pequeno lago que capitava as águas das precipitações pluviométricas rompera-se devido a infiltrações em sua estrutura numa sexta-feira à tarde. Os animais ficaram dois dias inteiros sem beber.

Quando chegamos lá na manhã de segunda-feira era visível o desespero dos bichos. Quando meu avô começou a ordenhar a vaquinha, saia de seus tetas, nada, absolutamente nada. Eu nada entendia, daquilo e meu avô parecia entender menos ainda. De repente, de tanto amassar as tetas, surgiu um pingo de leite viscoso, grosso, encorpado, muito diferente do leite natural que era tirado normalmente. Mais de repente ainda, o leite passou a fluir em jatos abundantes e, quando experimentado meu vô sentiu o teor de açúcar concentrado e que estimulava o paladar bem mais que o leite comum. Foi com espanto que o ouvi admirado perguntando de si para si:

- É leite condensado!?

- Leite condensado vô? Perguntei.

- Sim filho meu, a Condessa está dando-nos leite condensado. Não lhe falei que o nome dava ao dono um novo destino, que lhe imprimia um novo caráter? A História nos tem mostrado isso ao longo das gerações. Agora isso nos coloca numa sinuca de bico (eu não sabia o que vinha a ser uma sinuca de bico), não podemos mais deixar a Condessa aqui. Teremos que a levar de volta para casa e criá-la no quintal, mesmo contra nossa vontade, e ainda guardarmos esse segredo. Deixando-a aqui corremos o risco de que ela seja roubada ou sacrificada por supersticiosos. O fato era que a falta d’água mudara a densidade do leite.

Condessa morreu de velha morando em nosso quintal. Era alimentada com capim e melaço de cana e pouca água, o que deu, ao leite condensado um sabor refinado. Nunca mais emprenhara, ainda assim continuara produzindo leite até o final da vida. Todos os dias, ordenhava-se dez litros de leite condensado, os quais meu avô entregava a um revendedor no mercado central. Meu pai, meu avô e eu tínhamos um medo danado de que minha mãe viesse a falar no assunto com dona Bibi, sua melhor amiga que morava na esquina e dai “a vaca fosse para o brejo”...

São coisas de minha terra.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 22/03/2015
Reeditado em 18/07/2020
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