*O padre, a moça e a mula.

O padre, a moça a e a mula

Quando a missão franciscana chegou à cidade piauiense de Piripiri, no final do ano de 1932, foi o Padre Raul Formiga quem deu posse ao novo pároco, na missa do dia primeiro de janeiro de 1933.

Os franciscanos chegaram com uma bagagem imensa de esperanças e a certeza de que não teriam sossego, diante da messe que lhes fora destinada. Como sempre, os trabalhadores eram poucos.

Padre Formiga, como era mais conhecido, era um galego dos 'zoio' azul. Muito boa praça, adorava se embrenhar no meio da caboclada para contar e ouvir causos. Era um sacerdote forjado para lidar com pessoas rudes, graças à sua pedagogia de ouvir e servir. Onde ele chegava, chegava a alegria. Jogava futebol no meio dos meninos, de batina e tudo, e era respeitado e amado por todos.

Um belo dia, Padre Formiga conheceu um “caboco” contador de estórias. Era “a tampa e o tabaqueiro” ou, como se diz hoje, “a corda e a caçamba”.

O padre insistia para que o caboclo Durvalino contasse uma loa e esse matreiro, se esquivava, liso que nem mussum com quiabo. Mas teve um momento em que não deu mais para escapulir e Durvalino falou:

– Seu ‘pade’, vou lhe contar um causo que aconteceu comigo mermo, qui é pra mode caboco nium dizer que tô mintindo. Mermo pruquer o acontecido é da ciência de todo mundo aqui.

E ele deu início:

– Há uns quinze anos, teve nessas paragens uma seca de fazer dó. Quem tinha recursos se manteve, mas quem num tinha, o jeito foi botar o pé na estrada e perocurar arrego noutro canto do mundo. Eu fui um desses que prumode o distino não me castigar, tive que deixar meu Piripiri. Aqui deixei muié e fios e saí mundo afora, com a cara, a corage e minha mula buneca. Seu pade, vou lhe contar tim-tim por tim-tim...

- Eu tinha uma mula que eu não vindia por dinheiro nium. Mior que qualquer cavalo. Era mansa que nem uma criança, boa decarga e de montaria, era sabida. O siôr me descurpa pela heresia que vou dizer, mais eu queria perder um fio meu, mais não queria perder minha mula. Aquela mula não podia morrer nunca, purquê era minhas perna e meus braço. Se ela morresse um dia, acabava com toda a minha riqueza. Pois bem, botei uns trem em cima da mula e saí no rumo do Maranhão.

Se alembro que cheguei na capitá Teresina num domingo de manhãzinha, o povo estava indo pra missa das 5 hora, na Igreja de São Binidito. Amarrei a mula debaixo de um oitizeiro que tinha ali pertinho, botei os trem no chão pra mula discansá e fuipra missa tombém. Me dissero que quem ia rezar a missa era um pade muito santo e era verdade mermo. Um franciscano dos merminho desses que tem aqui agora. O pade quando abria a boca, enchia a alma da gente de paz. Tinha traquejo pra falá cum sabedoria. Eu acho que aquele santo não comia, pruque santo num come... Ele era alumiado por Deus no sermão, desimbarassava a bíblia com a merma facilidade, Cuma nois come feijão com farinha. Quando terminô a missa, eu fui pedir a bença pra mia empreitada e tive foi trabaio pra falá cum ele, qui tava arrudiado de gente. Ele bejô foi a mia mão, pego na mia cabeça, me deu bença e fui embora, certo de que era mesmo um santo e ele não cumia, pruquê santo não come.

Atravessei o Rio Parnaíba numa barca e do outro lado, era a cidade de São José das Flores. Fiquei com o coração apertadinho, apertadinho, deixando a mia terra. Ainda hoje eu penso que aquelas águas toda são as mia lágrimas... Dois dias depois, chequei em Caxias. Seu pade, por sorte ou por azar, eu conheci uma moça que num era só a moça mais bunita da cidade não, era a mais bunita do mundo, talvez. A moça era mais infeitada que a burra do Faraó, rebolava mais que charuto na boca de bebo. Moça elegante, gestos suave e mais qualidades que o siôr queira saber ela tinha. Acontece que para desmantelar tudo isso, penso que na face do chão, não ixistia outra mais orgulhosa que aquela. A moça não dava um “bom dia” pra ninguém, quem sabe pra não estragar sua fala. Andava sempre de venta empinada, oiando as pessoa de riba pra baixo, de rabo de zoi se achando superior a tudo. Seu pade, o siôr me perdoi apalavra mau dizida, pruquê pode até parecer ofença, embora num seja, mas aquela moça de tão orgulhosa, acho que ela num cagava, (todos riram largamente...) pruquê a gente pra cagar, se abaixa e ela não se abaixava pra nada nesse mundo...

Nesse ponto, o Padre Formiga perguntou se o Durvalino não iria terminar aquela loa, ao que ele respondeu:

– Termino já, seu pade, termino já.

Saindo de Caxias – continuou ele – uma semana depois, cheguei a Bacabal. Por sorte, o inverno não iria demorar. Pedi arrancharia a um coroné do lugar, que me deu terra. Botei roça grande, como nunca se tinha visto no lugar, dissero que eu era doido, que o mato iria cumer mia plantação, que num daria conta do recado, mais dei. Criei porco e cabras, tai Nossa Siora dos Remédios de prova. Vim duas vezes aqui, trazer mantimento e dinheiro pra muié. Nos três anos seguintes, botei roça ainda maior, trabaiando de sol a sol, de domingo a domingo. No quarto ano, com noticias de que a gente ia ter inverno por aqui, vendi tudo no Maranhão, agradeci os dono das terras e sem dever dinheiro a ninguém, voltei pra mia terra, onde tá interrado o meu imbigo e espero enterrar o resto da carcaça.

Mais seu Pade, as três coisas mais dificis de acontecer, aconteceu...

Coitado do Padre Raul Formiga. Sem que ele percebesse, o caboclo Durvalino havia dado uma “deixa”, preparado uma isca e o sacerdote mordera ao indagar:

– E o que aconteceu, homem de Deus?

– Pois é, seu pade, esse mundo veio tá é perdido, pruque aconteceu o que não podia ter acontecido: minha mula morreu... a moça cagou... e o Pade cumeu.

Agora imaginem a farra que isso causou! E quem mais sorriu foi o Padre Formiga.

São coisas de minha terra.

Eu ouvi, acreditei e conto.