A DISPUTA DOS PAPA-DEFUNTOS
Agente funerário há muitos anos, Ataíde não tinha mais medo da morte. Aliás, a única coisa que ainda lhe metia medo era a concorrência. Uma cidade pequena como aquela, com um único hospital e um único médico – aliás, bem velho e de métodos bastante ultrapassados –, não comportava duas empresas de serviços funerários. Mas aquele jovem forasteiro, Armando, decidira se instalar por ali, e colocara sua funerária bem na frente do hospital – “para agourar os doentes”, costumava dizer Ataíde, embora sua própria agência não ficasse a mais de vinte metros do portão principal do nosocômio.
Não por acaso, mas pela sonoridade causada pela semelhança entre as palavras, Ataíde denominava sua empresa de “Ataíde Ataúdes”. Já o novato decidira chamar a sua de “Armando Sepultamentos” – coisa sem lógica e sem graça, na opinião do veterano.
Ataíde aproximou-se do necrotério sentindo-se em estado de excitação mental. O morto era o pai do Prefeito – uma bela oportunidade de demonstrar os seus serviços, de fazer propaganda, de desbancar de uma vez a concorrência daquele rapaz atrevido.
Todavia, quando abriu a porta, ao lado do defunto, enxergou o jovem funerário, examinando atentamente o corpo e planejando os detalhes de sua preparação.
– O que você faz aqui? gritou, indignado.
– Ora! respondeu Armando. – Vim preparar o funeral deste homem!
– E com autorização de quem você pensa que está fazendo isso? perguntou Ataíde.
– Com a autorização da nora do defunto. Foi ela quem me contratou!
– Pois fique sabendo que quem me contratou foi a esposa do falecido – respondeu Ataíde, indignado.
Armando estremeceu um pouco. Embora fosse novo na cidade, já lhe haviam chegado aos ouvidos os boatos de que a mãe do Prefeito não se dava muito bem com a mulher dele. E agora, ele e seu colega de profissão estavam irremediavelmente envolvidos na disputa que havia entre as duas.
– Pois a esposa tem muito mais direito do que a nora – arremeteu Ataíde, com raiva.
– Acontece que a nora é a Primeira-Dama do Município – respondeu Armando. – Não acho que seja prudente você se colocar numa situação de oposição a ela.
– Armando! gritou-lhe o mais velho. – O pai do Prefeito era um homem muito respeitado nessa cidade! Não vou deixar que você estrague o enterro dele!
– Como assim, estragar o enterro?
– Como naquele caso daquele homem gordo, do funeral de que você tratou na semana passada. Pensa que eu não fiquei sabendo que você calculou mal a proporção entre o peso do morto e a resistência do caixão? Pensa que eu não fiquei sabendo que, quando carregavam o ataúde pelas alças, o fundo se soltou e o morto desabou no chão da calçada?
– Pelo menos não fui eu quem tocou “funk” em vez da Marcha Fúnebre no enterro da mãe do juiz – respondeu Armando.
– Aquilo foi um acidente! protestou Ataíde. – Minha filha trocou as capas dos CDs. Ela adora o Bola de Fogo!
– Ah, meu caro – disse-lhe o outro, com desdém –, mas o fato de a pobre senhora ter descido à cova ao som de “Tô Ficando Atoladinha” pegou mal para você...
Ataíde estremeceu de raiva.
– Agora chega, moleque! Dê o fora daqui e deixe o meu defunto em paz!
– Seu defunto uma ova! O meu defunto vai ter um enterro de luxo, e eu vou provar a esta cidade...
– A única coisa que você vai provar é a força do meu braço – interrompeu Ataíde, lançando-se sobre o concorrente.
Então, ambos se engajaram numa feroz luta corporal. Envolvidos como estavam na briga, não perceberam quando o cadáver abriu os olhos, sentou-se na mesa, espiou-os e saiu do necrotério, encolhido.
Quando o defunto dobrou uma esquina do corredor do prédio, deparou-se com o médico da cidade. Atrás dele, vinha o diretor do hospital, um homem que não entendia nada de Administração, muito menos de Medicina, mas era puxa-saco do Prefeito e tinha fortes aspirações políticas.
Porém, quando o doutor viu caminhar em sua direção o homem que, há poucas horas, dera por morto, deu um salto para trás, como um gato, e empoleirou-se nos braços do seu chefe, invocando todos os santos de que conseguiu se lembrar.
– Caramba! murmurou o diretor, assustado. – Seu Olegário! A gente achava que o senhor...
Olhou em volta. Não havia mais ninguém por ali. Súbito, intuiu que a pressa do médico em assinar o atestado de óbito havia colocado em maus lençóis a credibilidade do estabelecimento que dirigia...
– Saia de cima de mim, doutor – disse. – Seu Olegário, venha cá. Aqui, isso. Por favor, entre nessa peça, sinta-se confortável. Aguarde um pouquinho, por favor. Já voltamos.
Saiu do quarto onde havia deixado o pai do Prefeito e passou a chave. Agarrou o doutor pela gola da camisa e puxou-o para dentro de uma saleta.
– Caramba! gritou. – O que o senhor fez? Eles iam enterrá-lo vivo!
– Eu juro que não sabia que ele estava vivo, diretor!
– Ah, não? O senhor não é médico? Ainda se se tratasse de um pobre coitado! Mas o senhor examinou um dos homens mais ricos e respeitados da cidade, e o deu por morto. Só que ele me parece bem vivo!
– Mas eu achei que ele não estava respirando! Talvez... Talvez estivesse respirando bem baixinho... O senhor sabe, há casos em que a gente se confunde...
– O senhor não parou para ver se ele tinha pulso?
– Talvez estivesse fraco demais para eu senti-lo. Usei o estetoscópio no peito dele, mas...
– Mas o quê?
– Talvez seja verdade o que andam dizendo por aí...
– O que que andam dizendo, caramba?
– Que eu estou ficando meio surdo...
– O senhor nunca ouviu falar em morte cerebral, doutor? Por que não testou os reflexos oculares dele?
– Eu testei, diretor! E juro que a pupila não se mexia!
– Testou? – o diretor estremeceu. – Em ambos os olhos?
– Bem, eu estava com pressa. Testei só no direito...
O diretor do hospital exasperou-se.
– Acontece que o olho direito dele é de vidro, seu imbecil! Todo mundo na cidade sabe que ele o perdeu num acidente!
– Ah, é... Bem, talvez seja verdade o que andam dizendo por aí, também...
– O quê, cacilda?
– Que eu estou ficando meio esquecido...
O diretor suspirou profundamente.
– Porque o senhor não usou o maldito desfibrilador, que nos custou uma nota preta? perguntou ao doutor.
O médico o encarou com ar ofendido.
– Não venha me ensinar a exercer a Medicina, diretor. Para mim, coração ainda é que nem motor de carro velho: se não pega no tranco, melhor abandonar na estrada.
O diretor teve vontade de esmurrá-lo. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Ocorreu-lhe que era bem possível que várias pessoas houvessem sido enterradas vivas naquela cidade, ultimamente...
– Bem, o fato é que agora nós dois estamos lascados – disse, pesaroso.
Arrastou o doutor para o quartinho onde o pai do Prefeito os esperava.
– Seu Olegário – perguntou –, eu não queria incomodá-lo com isso, mas o que estava acontecendo naquela pecinha de onde o senhor saiu?
– Aquela pecinha? Onde eu estava deitado em cima de uma mesa?
– Essa mesma, seu Olegário...
– Bem, eu só me lembro de ter acordado e de ter visto dois homens metidos numa briga. Aí, resolvi sair de fininho, antes que me pegassem para testemunha...
Subitamente, o diretor sentiu como se um relâmpago atravessasse sua mente. Estava começando a ter uma idéia. Arregalou muito os olhos e disse ao pai do Prefeito, em tom confidencial:
– O senhor fez muito bem, Seu Olegário. Aqueles homens são bandidos muito perigosos. Se forem aos tribunais, qualquer um deles poderá matá-lo para impedir que sirva como testemunha.
– Ah, é? Pois um deles me “pareceu muito parecido” com o Seu Ataíde, o papa-defunto.
– Mas é só parecido, Seu Olegário. – Respirou fundo. – Aliás, acho que a melhor coisa que o senhor tem a fazer é sair imediatamente da cidade.
– Eu? Mas e a minha família?
– Não se preocupe, Seu Olegário. Eu aviso todos eles, depois. Agora, o que o senhor tem a fazer é se mandar daqui, para salvaguardar a sua segurança pessoal.
Seu Olegário empalideceu.
– Sim, senhor – disse. – Vou sair daqui imediatamente... Vou passar um tempinho na capital...
– Vá, sim. Não se preocupe. Não precisa mandar buscar suas coisas. Eu mesmo posso lhe emprestar algumas roupas e algum dinheiro. Fique num hotel ao menos por alguns dias, até a poeira baixar...
“... E até eu pensar no que fazer”, continuou mentalmente.
Mandou alguém ir à sua casa buscar roupas e dinheiro para o “ex-defunto”, que manteve trancado no quartinho. Então, agarrou o médico por um braço e arrastou-o até o necrotério.
– Agora, o senhor vai me ajudar a desfazer a porcaria que fez – resmungou.
Quando chegou ali, os dois agentes funerários ainda trocavam socos e pontapés. Pigarreou. Não pararam. Pigarreou com mais força. Os dois continuaram a briga. Falou com eles. Gritou. Nada de lhe darem atenção.
– Senhores! berrou, por fim. – Vocês não estão dando pela falta de alguma coisa nesta sala?...
Subitamente, os dois pararam de brigar e olharam para a mesa do necrotério.
– Cadê o meu defunto? gemeu Ataíde.
– Seu defunto coisa nenhuma! respondeu Armando. – Cadê o meu defunto?...
– Senhores – disse o diretor do hospital, com ar superior –, parece que, enquanto vocês lutavam, alguém entrou nesta sala e roubou o corpo do falecido.
Ataíde arregalou os olhos.
– E porque alguém roubaria um cadáver? perguntou.
– Sei lá. Para muitas coisas. Para fazer magia negra, para vender para uma faculdade de Medicina... Se vocês dois não estivessem aqui, diria que um roubou para esconder do outro. – Fez uma pausa. – Vocês não se deram conta do ridículo da situação? E se aparece por aqui alguém da família desolada, e encontra vocês engalfinhados como dois cachorros de briga, desrespeitando os sentimentos dos entes queridos e a própria memória do morto? E agora, senhores, o que vamos dizer ao Sr. Prefeito? Quando descobrir que lhe roubaram o corpo do pai nas barbas de vocês dois, tenho certeza de que ele vai cassar o alvará de funcionamento de ambos...
Os agentes funerários se entreolharam e estremeceram.
– Bem – disse o diretor –, mas ainda há uma maneira de salvar a situação. O jeito é nós providenciarmos o enterro com o caixão fechado. Podemos dizer que o doutor aqui ouviu o morto dizer que era seu último desejo, que não queria seu cadáver rijo e empalidecido exposto aos olhares dos curiosos. Daí, colocamos alguma coisa dentro do caixão, para fazer peso. Mas só vai dar certo se os dois concordarem em trabalhar juntos, ao menos desta vez.
Horas depois, durante o velório, os agentes funerários permaneciam encostados à parede, enquanto uma longa fila de pessoas vinha dar os pêsames aos familiares. A mulher e a nora do pranteado ficaram cada uma de um dos lados do caixão, e disputavam furiosamente a atenção dos que haviam comparecido.
– A cerimônia até que ficou bem bonita – comentou Ataíde. – Tenho de admitir que você trabalhou bem.
– Você também caprichou na sua parte – respondeu Armando.
– Sabe, até que é bom haver dois agentes funerários na cidade. Se houver só um, quem vai cuidar do enterro dele?
– Ah, isso não é mais preocupação para você – respondeu o jovem. – Terei muito prazer em enterrá-lo.
– Como?
– Claro que, como é muito, muito mais velho do que eu, sou eu quem vai prepará-lo para o caixão.
– O que você está dizendo, moleque? Está me chamando de velho?
– E vai me dizer que você não é?
Foi o que bastou para lhes incendiar novamente os ânimos. Sem de darem conta dos riscos daquela atitude, ambos se engalfinharam novamente. No meio da briga, caíram por cima de pessoas horrorizadas e esbarraram no caixão, que escorregou do suporte e estatelou-se, fazendo-se em pedaços. Todo mundo na sala soltou um “oh!” ao ver que, dentro dele, jazia um porco, já pelado, com uma maçã na boca – foi a única coisa que o diretor do hospital encontrara em casa que tinha mais ou menos o peso do Seu Olegário.
– Ei! gritou o Prefeito, furioso. – Esse aí não é o meu pai!
– Ora, mas até que é parecido – deixou escapar alguém.
Os agentes funerários interromperam a briga e se entreolharam.
– E agora? perguntou Ataíde.
– Agora, lascou tudo – respondeu Armando.
E dizem que, até hoje, quando morre alguém naquela cidadezinha, precisam chamar um agente funerário de outra localidade. Porque as empresas que trabalhavam no local foram fechadas, seus donos saíram da cidade, e nunca mais se soube notícias deles, nem do médico, e nem do diretor do hospital, que também se perderam pelo mundo afora. E ninguém do lugar se atreveu a abrir uma nova funerária, por medo de que os mortos do lugar ressuscitassem, depois que alguém comentou que vira o falecido pai do Prefeito bem belo, na capital, saindo de um motel de braços dados com uma moça loira...
MAIO DE 2007
Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.