Foto: © Fátima Rocha Perini

CORAÇÃO DESAFOGADO DO FUNDO DO RIO

  — Venha! Este restaurante de beira de estrada é melhor do que a maioria dos de cidades grandes, sempre paramos aqui. Enquanto comemos alguma coisa e tomamos um café, eu aproveito pra dar de mamar a Tainá, mas tenho que terminar a história antes do Zé chegar com a peça do seu carro reparada… e olhe que ele é rápido hein! É um engenheiro mecânico muito competente, mas vamos ao que interessa, vou resumir pra responder à sua pergunta e me sentirei honrada se o meu relato fizer parte do seu livro. Pois é querida… tem muito pouco tempo que nos conhecemos, mas eu sinto quando alguém é de confiança, e isso vem de uma crença verdadeira, baseada na minha experiência de vida. Foi essa espécie de intuição que eu senti quando eu conheci o Zé, o melhor homem do mundo. Você viu como ele é gentil, prestativo, ninguém imagina que alguém formado na melhor universidade do Rio de Janeiro, muito culto, fala fluentemente inglês e espanhol, um português perfeito, pode ser um caminhoneiro. Então… vou começar falando dos meus pais que são evangélicos, pessoas muito pobres. Sempre moramos na periferia de Manaus, perto da BR-174 . Família grande, cinco homens e três mulheres, sendo eu a mais velha das meninas. Pra você ter uma ideia da nossa miséria, não tínhamos sequer certidão de nascimento.  Os evangélicos prometeram arrumar isso, mas nunca cumpriram, fui eu quem conseguiu. — Quer leite no café? … eu também prefiro puro, coma um pãozinho de queijo… mas cuidado! acabou de sair do forno, quase queimei a língua —. No dia 23 de agosto de 2003, eu estava completando 13 anos e meus pais me chamaram pra conversar. Disseram que eu já era mulher feita, portanto, tava na hora de ajudar a família e, naquela mesma noite, eu iria pra BR-174 fazer programas com os caminhoneiros. Senti o mundo desmoronar sobre minha cabeça. Eu era virgem, e o medo me invadiu com tamanha voracidade que senti uma enorme dor  e uma queimação no peito, como se meu interior estivesse em fogo vivo. Fui acometida por uma febre de quarenta graus que quase me matou. Chorei a noite inteira. Meus pais diziam que Jesus ia tomar conta de mim, tudo ia dar certo e não havia outra saída. Se eu não fosse minha irmã de onze anos iria em meu lugar. Tive que ir. Dois dias depois de receber a notícia, minha mãe me levou pra estrada e entramos numa barraca toda de plástico preto. No interior havia um balcão cheio de garrafas de cachaça, alguns pacotes de pães, biscoitos, latas de sardinhas e salsichas. Debaixo do balcão tinha uma caixa grande de isopor com cervejas. Minha mãe e uma mulher mais velha, a dona do lugar, falavam baixo e me olhavam com frequência. Depois dessa conversa, mamãe veio até a mim e falou que a dona da barraca me ajudaria, passou a mão nos meus cabelos, me aconselhou a ser corajosa e foi-se embora sem ouvir as minhas súplicas nem se comover com as minhas lágrimas. Eu estava atormentada. A tal mulher me chamou e me observou nos mínimos detalhes.  Olhando bem dentro dos meus olhos, com uma voz grave e muito autoritária ela me disse: “que era assim mesmo, todo mundo tinha medo, mas tudo iria ficar bem, que eu iria até gostar, ela falaria com um homem muito bom pra àquela primeira vez e que todo dia 23 de cada mês, Iraci, minha mãe, viria pegar 50% do dinheiro dos programas e ela ficaria com os outros 50% pra cobrir as despesas e o trabalho dela. Eu teria direito ao café da manhã com pão, um bom prato de comida por dia, roupas adequadas e lugar pra dormir”.  Ela me levou para detrás do balcão, puxou a cortina feita do plástico preto  que separava o fundo do bar de um quartinho minúsculo e escuro, todo plastificado em derredor,  contendo uma cama feita de caixotes com um colchão forrado de um tecido vermelho desbotado. Ela isolou novamente o recinto puxando o plástico, demos mais uns dois passos adiante e ela repetiu o mesmo gesto e vi outro cômodo igual ao primeiro até que,  finalmente, me mostrou o terceiro. Percebendo minha aflição, ela tentou me tranquilizar afirmando que está sempre  no balcão, bem pertinho dos quartos, ouvindo tudo que acontece lá dentro. Em seguida, ela me ofereceu um pedaço de pão com café. Recusei e pedi um copo d’água, ela então, pegou no meu braço, me levou por detrás da barraca e me anunciou: “É lá onde as meninas tomam banho e de onde sai toda a água que usamos aqui. Cada qual busca a sua”,  apontou na direção de uma pedreira muito bonita com um riozinho amarelo  dourado que avançava pelas pedras até cair num poço. Desci pro rio correndo como se fosse cair nos braços de um parente cheio de saudades e acolhimento. Levantei a saia do meu vestido até o pescoço e, com uma cachoeira saltando dos olhos, entrei naquelas águas com o coração gritando por socorro, como se elas fossem levar todas as angústias daquele momento de abandono por alguém que tanto amo, que me ama, mas que queria me coisificar. É a miséria. Ela pode fazer uma pessoa perder sua humanidade. — Não querida, não chore, esta é uma história que tem um final muito feliz. Apesar da carona ter sido curta, acho que deu pra você sentir o quanto nós adoramos nossa vida de caminhoneiros, você viu que meu filho, Ubiratã, é um menino inteligente, sabe ler e escrever e nem completou ainda cinco anos —, enfim, queria ficar naquele rio lindo por toda a eternidade. Pensei que o melhor seria me entregar de corpo e alma àqueles doces braços. O temor da vida me fez perder o medo da morte. Respirei longamente para encher ao máximo meus pulmões e, com as mãos numa das pedras, impulsionei meu corpo indo o mais profundo que podia pro fundo do poço raso. Fiquei lá, deitada no seu leito, esfriando a cabeça, olhando e sentindo a correnteza passear sobre mim. Um sentimento de comunhão, de paz, de alívio. De repente, fui arremessada pra cima. Era o Zé. Ficou muito sujo ao concertar o caminhão que havia quebrado e um colega indicou pra ele o riozinho. Percebendo meu desespero e eu confiando nele de imediato, fui facilmente convencida a revelar o que estava me acontecendo. Ele conseguiu me acalmar e subimos os dois pra barraca com a promessa de que ele conversaria com a aliciadora. Fizeram um acordo. Todo mês, ao passar por essa estrada, ele deixaria uma quantia pra ela dividir com minha família e evitar que minha irmã de onze anos viesse parar nessa barraca negra, sombria e sufocante. Fui morar na casa de dona  Anita,  mãe do Zé, na cidade do Rio de Janeiro onde  fiz meus estudos  de enfermagem. Desde o primeiro momento que vi esse homem fiquei apaixonada, mas ele resistia ter algo comigo, por ser mais velho e não querer aproveitar da situação — Já viu né? —. Tive outros namorados, perdi minha virgindade aos dezessete anos, mas só aos dezenove…ih querida!!!  Não vai dar pra continuar… oh o Zé chegando!
 
 
Fátima Rocha Perini
Enviado por Fátima Rocha Perini em 20/02/2014
Reeditado em 01/05/2014
Código do texto: T4699202
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