CONTOS NORDESTINOS - PADRE CICERO
Assim conta minha mãe, que após a morte do Padre Cícero, ele andou pelos sertões fazendo milagres... isso mesmo, depois de falecido!
Minha mãe, que é a filha mais velha dos meus avós, não tinha irmãos ainda, quando isso aconteceu. Ela era bem pequena, por volta dos 2 anos de idade e nem andava ainda, porque as crianças daquela época não andavam antes dos dois anos, devido a desnutrição e a falta de cuidados médicos, assim, minha mãe era uma criança fraca, doente e que tinha, além de tudo, a cabeça cheia de feridas que não saravam nunca.
Numa manhã, enquanto ela estava em casa com os pais e com sua avó materna, cuja casa era uma das mais simples do vilarejo, perto da roça, se aproximou um cavaleiro, um homem alto e bonito, vestido de terno cinza, bem barbeado e penteado, que pediu para entrar, descansar e tomar uma caneca de água, antes de continuar a cavalgada. Naquele tempo, isso era algo corriqueiro, os viajantes pararem e pedirem água e descanso nas casas por que passavam, antes de prosseguirem viagem. Assim, meus avós, Manoel e Josefa, deixaram o homem entrar em sua humilde casa, serviram-no água e ficaram a observar, com seus olhos curiosos, o fino cavaleiro, que mais parecia um doutor.
Eis que o homem sentou-se num banco a um canto e disse, educado:
- Obrigado pela água...
- Num tem de quê... – respondeu meu avô.
- Mas por que andas brigando com sua esposa? – perguntou o estranho, que pela surpresa que causou, arrancou de meu avô Manoel um olhar estatelado. Como podia aquele estranho saber das brigas daquele casal? Antes que meu avô pudesse responder, o cavaleiro continuou: - Deves aprender a ser mais tolerante com vossa esposa, meu bom homem! – e levou a caneca de água à boca mais uma vez, sorvendo um sonoro gole. Diante do silêncio instalado, o estranho voltou-se para minha avó Josefa, que, a essa altura, segurava o próprio avental, trêmula. – E quanto a você, minha jovem, por que cortaste seu cabelo, quando sabes bem que isso iria contra a vontade de vosso marido?
Josefa havia cortado o cabelo uma semana antes e aquilo havia gerado brigas violentas entre o casal. A jovem arregalou os olhos ainda mais e não disse nada em resposta.
O estranho, então, levantou-se e saiu para fora da casa, deixando aquela família assustada, refletindo sobre suas palavras. Retornou em poucos minutos e, para surpresa ainda maior de todos, seu terno cinza havia mudado de côr e agora ele vestia um terno bege. Manoel e Josefa se arrepiaram de medo, alimentando pensamentos de assombração ou qualquer coisa parecida.
A mãe de Josefa, Mãe Mina, que até então estava sentada um pouco mais afastada, cuidando do bebê que choramingava, levantou-se devagar, se aproximou do visitante e, com respeito, falou-lhe:
- Eu tenho uma venda, moço! Eu vendo bebidas e bananas. Vou até lá pra modi buscá uma pinga para o senhor...
- Num carece! – interrompeu o estranho. – Eu não bebo, mas venda sua pinga e junte seu dinheiro para comprar cobertor para suas filhas, pois o inverno se aproxima.
Mãe Mina, Josefa e Manoel se espantaram ainda mais. Como poderia aquele estranho saber que Mãe Mina estava economizando dinheiro para comprar cobertores para as suas sete filhas?
Naquele momento, chega uma vizinha, Dona Aurora, que ao passar por ali, ficou curiosa ao ver um estranho cavalo à porta da casa. Foi entrando, carregando seu filho ao colo, que chorava baixinho, e dizendo:
- Bom dia!
- Se achegue! – disse Josefa. – Esse viajante está de passagem...
O estranho cavaleiro olhou bem para a recém-chegada e seu filho e perguntou:
- O que tem o menino?
- Num sei, não sinhô! O menino só chora, é doentinho...
- Seu filho não está doente, minha jovem! Pare de amamentar seu filho, pois você está grávida e seu leite incomoda o menino. – dizendo isso, o homem voltou a sentar-se no banco e Dona Aurora arregalou os olhos, surpresa.
- Estou grávida?
- Sim, está! – confirmou o estranho, com naturalidade.
Dona Aurora saiu da casa sentindo-se confusa...
O homem ainda ficou ali sentado por um tempo, tomando sua água. Voltou a sair e deu água a seu cavalo, retornando para dentro de casa vestindo, agora, um terno verde. Cada vez que ele se ausentava das vistas, reaparecia vestido com um terno de côr diferente, para espanto ainda maior da família que o acolhia.
Em pouco tempo, a notícia se espalhou pelo vilarejo e as pessoas vieram à casa de Manoel e Josefa, curiosos por conhecer o estranho que adivinhou a gravidez de Dona Aurora. Algumas pessoas traziam criancas doentes ao colo e ele não negava-lhes uma assistência, diagnosticando a doença só de olhar para a criança e aconselhando o medicamento ou o tratamento correto. Em poucas horas, atendeu dezenas de pessoas, de forma informal e rápida, adivinhando seus problemas e determinando a solução.
Chegou, então, uma senhora trazendo um homem pelo braço, que foi logo dizendo:
- Meu bom homem, este é o Seu João e ele é meu vizinho. Sua esposa acabou de dar à Luz e passa muito mal... – Seu João, porém, tinha uma fisionomia desconfiada.
- O que tem sua mulher, homem? – perguntou o cavaleiro.
- Ela está muito fraca. – respondeu Seu João, com rispidez.
- Posso ir até sua casa...
- Não, não vai... – interrompeu o homem. – Não quero nenhum catimbozeiro na minha casa, não.
O cavaleiro, então, virou-se, deu-lhe as costas e sentenciou:
- Pois que seja! Preferes enterrar vossa mulher daqui a três dias!
Seu João não deu importância e, com a fisionomia determinada, saiu e foi-se embora, proferindo maldições.
O estranho cavaleiro estava vestido de azul àquele momento, quando, voltando-se para o bebê de Josefa, perguntou:
- O que tem o seu bebê?
- Ela tem uma ferida na cabeça, que não se cura...
O estranho saiu para fora, apanhou uma bolsa que estava no cavalo e voltou, vestido em seu terno marrom. Abriu a bolsa e tirou de dentro uma seringa de borracha. Aproximou-se do bebê ao colo de Josefa e, com aquela seringa, borrifou ar sobre a ferida vermelha e cheia de pus.
- Daqui a três dias, ela estará boa!
Josefa abriu um sorriso de agradecimento, sem palavras.
- Bem, tenho que ir embora... – disse o estranho visitante.
Mãe Mina, vencendo o medo, perguntou, tímida:
- Moço, o senhor veio aqui pedindo água para matar sua sêde, mas acabou adivinhando nossos problemas, trazendo conforto em suas palavras e dando conselhos valiosos. Poderia, pelo menos, nos dizer o seu nome?
O cavaleiro misterioso mostrou sua mão direita e o anel dourado com uma pedra vermelha, que tinha em seu dedo anular.
- Saberás quem sou quando avistares este anel na mão de um padre... – dizendo isso, apanhou seus pertences, despediu-se e saiu. Montou em seu cavalo e se afastou a galopes curtos, sumindo na paisagem árida do sertão nordestino.
Três dias depois, a ferida na cabeça do bebê de Josefa havia se transformado numa casca grossa, que caiu como uma cuia, deixando o couro cabeludo com uma pele nova, lisa e rosada, pronta para o cabelo novo que veio em seguida. Dona Aurora parou de amamentar seu bebê que se curou da doença misteriosa, engordando e crescendo feliz, enquanto o irmãozinho crescia no ventre de sua mãe. Toda a vizinhança compareceu ao funeral da espôsa do Seu João, que faleceu três dias após aquela visita. E todos, de uma forma ou de outra, confirmaram as predições do estranho cavaleiro.
Josefa e sua mãe, a Mãe Mina, passaram a ir a todas as missas de todas as igrejas da região, procurando, ávidas, pelo misterioso anel na mão de um padre, mas nunca mais o viram, pelo resto dos anos de suas vidas. Sabendo dos milagres que o Santo Padre Cícero fazia em todo o Nordeste, não tiveram dúvidas! Aquele estranho cavaleiro, que trocava a cor do terno a cada minuto, que adivinhava o que ía nos corações de todos, que aconselhou e curou aquele pobre vilarejo, era o próprio Padre Cícero, o Santo Padre!
Aquele bebê, a filha de Josefa, cresceu para me contar esta história e é ela a minha mãe!