DISPUTA DE UM TÚMULO
Era um advogado em início de carreira numa cidade do interior. Embora recém-formado, já havia atuado em várias causas, principalmente na área de direito de família obtendo bons resultados. Um belo dia foi procurado por um amigo para resolver um problema inusitado.
Acontece que a genitora do seu amigo havia falecido, e seu filho tratou de adquirir um dos jazigos que eram colocados à venda pela prefeitura do local, para o sepultamento da sua mãe.
Por problemas de ordem técnica da prefeitura, não foi possível ultimar o contrato de compra e venda do jazigo, mas o setor da prefeitura o autorizou a efetuar o sepultamento da sua mãe, e que depois acertariam a parte burocrática do contrato. O referido jazigo estava desocupado de qualquer morador, e meio abandonado sem qualquer manutenção. Também lhe foi informado que tal jazido tinha sido alienado para outra pessoa que nunca se preocupou em ocupá-lo com restos mortais de seus parentes, bem como já havia sido efetuada sua permuta por outro melhor localizado. Acrescenta-se que esse jazigo, pelas condições do terreno, tinha sido construído fora de esquadro. Se observarmos as construções elaboradas por arquitetos que procuram dar vida as formas estruturais, e, muitas vezes, acabam construindo casas deslocando os cômodos em posições diferentes para sair do padrão de construções quadradas, o jazigo até que se enquadraria como uma construção moderna.
Durante o sepultamento da mãe do amigo do advogado, alguém levantou a questão de que aquele jazigo pertenceria a outra pessoa, sendo que foi questionado aos sepultadores (coveiros) sobre esse fato levantado, inclusive chamando o responsável pela funerária, e todos foram unânimes e afirmar que o jazigo destinado ao sepultamento era aquele mesmo, que havia sido feita uma permuta dos imóveis. Seguiu-se o sepultamento normalmente, sem maiores problemas. Todos os presentes muito pesarosos e solidários com a dor dos familiares que haviam perdido um ente querido.
Dia seguinte ao sepultamento, o amigo do advogado o procurou dizendo que tinha sido procurado pelo pessoal da prefeitura e mesmo da funerária, para que ele autorizasse remover o corpo da sua mãe, devido ao sepultamento em local indevido. O advogado orientou seu amigo que a remoção só seria possível mediante autorização judicial, e que ele não deveria, em hipótese alguma, proceder tal autorização.
Diante do rumo que as coisas estavam tomando, haja vista que a prefeitura instaurou uma comissão de sindicância para investigar o fato, o advogado orientou seu amigo para que ajuizasse uma ação de obrigação de não fazer, para impedir que os restos mortais de sua mãe fossem removidos, mesmo porque os familiares já estavam se afeiçoando ao jazigo, que era meio “tortinho”, com uma arquitetura diferente. A primeira proprietária alegava que queria aquele jazigo, pois, ao lado tinha um outro jazigo, este construído no esquadro, e que pertencia a uma família que havia sido sua vizinha de propriedade rural Os sítios das famílias faziam divisa e eles se davam muito bem, motivo esse porque ela queria que a vizinhança também continuasse no cemitério. Entretanto seu marido estava sepultado em cova rasa, há muito tempo, sem que ela tivesse se preocupado em removê-lo para o jazigo “tortinho”.
O filho da falecida aceitou a orientação do advogado, e ajuizou a ação de “Obrigação de Não Fazer, cumulada com pedido de Liminar”, para que os restos mortais de sua falecida mãe não fossem removidos daquele local, onde estavam sepultados. O juiz da causa deferiu liminarmente o pedido, determinando que os restos mortais da falecida não fossem removidos, bem como naquele local não fossem sepultados pessoas estranhas à família da falecida. Bem, o primeiro round havia sido ganho, mas outras etapas do processo ainda estavam por vir.
Quando do despacho do juiz ele ainda comentou que seu pai, que havia sido juiz titular por vários anos em Vara da Família e Sucessões, nunca tinha julgado um caso dessa natureza, que beirava o tragicômico.
Assim o processo teve seu regular andamento, com a contestação da municipalidade, réplica do autor, até a audiência de instrução e julgamento, quando, então, esta foi presidida por uma juíza de direito que tentou de várias formas uma composição para por fim à lide. Como a proprietária anterior se mantinha irredutível, não querendo perder a vizinhança tumular, do seu antigo vizinho de propriedade rural, a juíza, ante os depoimentos das testemunhas que afirmaram que havia sido feita a permuta tácita, apenas havia sido ultimada a documentação, julgou a ação totalmente procedente, determinando que a propriedade do jazigo fosse transferida ao filho da falecida, e que a municipalidade dispusesse outro jazigo para a outra família. Com essa decisão estaria rompida a vizinhança tumular.
Inconformada com tal decisão, a municipalidade recorreu, apelando à instância superior, porém, nas contrarrazões de apelação, o advogado colocou um texto do grande jurista Ruy Barbosa, onde ele fazia referência do “culto aos mortos”, e que na nossa cultura latina, o cemitério é tido como um “campo santo”, onde os nossos antepassados descansam em paz. O resultado no tribunal, não foi outro, senão confirmar e manter a sentença de primeiro grau, determinando, assim, a posse definitiva do jazigo para a família da falecida que, imediatamente, providenciou uma melhoria no aspecto do jazigo “tortinho” dando-lhe um revestimento de granito e o transformando numa verdadeira obra de arquitetura.
Assim, uma situação que começou de uma forma um tanto inusitada, acabou tendo um desfecho que contemplou as necessidades do amigo do advogado, que não brigou pela posse de um jazigo, mas sim pelo respeito que se dever ter com os entes querido sepultados, e que merecem o descanso eterno, na nossa cultura latina.
Para o advogado em início de carreira, foi uma vitória, pois pode colocar no seu currículo, a vitória que obteve na defesa da propriedade de um jazido, ganhando a ação tanto em primeira instância, como em instância superior no Tribunal de Justiça.