O Padre, o Sacristão e o Gaiteiro
O PADRE ,O SACRISTÃO E O GAITEIRO
Nos fandangos do Rio Grande, antes tempos, um dos mais festejados sempre era o Gaiteiro. Fosse uma oito baixos, fosse uma pianada, era sempre quem animava, até o clarear do dia, quando então o dono da casa, gritava “Tá na hora do Café”, aí todo mundo parava, pois o gaiteiro também deixava de tocar.
Pois em minhas andanças nos tempos de piá, já meio taludo, conheci um gaiteiro que me chamou muita atenção. Ele tocava sempre rindo, cantava coisas alegres e nunca vi tristeza no semblante.
Os bailes da época, sempre eram aos domingos, ou em alguma ocasião especial, principalmente quando havia batizado aniversário ou casamento.
Eu era “Coroinha” e sempre acompanhava o padre pelas campanhas, quando ele ia fazer algum batizado ou casamento, apesar de meus dezesseis anos, já havia tido várias namoradas e o gaiteiro, que me conhecia dos diversos locais onde tocava, pois era muito solicitado, devido ao seu jeito alegre de tocar e cantar. E eu sempre acompanhava o Padre, pois tinha em cada lugar, sempre alguma guria que eu dançava de par Efetivo (o pessoal dizia de par afetivo).
O Gaiteiro, que era bem de campanha, me chamava de “Sãocristão”, ele com isto queria dizer “Sacristão” que era como o pessoal chamava os coroinhas que ajudavam a missa. Mas eu era mesmo um ajudante do Padre, pois até morava na casa paroquial, em um quarto que existia em cima da garagem do Ford de Bigode (um modelo 1929) que era usado nas viagens. Às vezes eu até fazia o papel de “Chofer”, pois o Padre nestas festas quase sempre tomava umas cervejas ou vinho a mais e dormia no caminho.
Mas voltando ao Gaiteiro, eu estranhava que ele não ia aos bailes a cavalo, ou de “aranha” (como eram chamadas as charretes), pois carros eram raros e somente os mais abastados possuíam.
Era um homem já de meia idade, lá pelos seus trinta ou mais anos, melenudo, bigode grande e sempre de bombacha larga e botas de fole de gaita. Era uma figura que chamava a atenção e despertava paixões nas prendas solteironas, e nas mocinhas, tal qual os artistas de hoje.
Ele era sempre contratado pelos padrinhos ou pelos pais das noivas, e ganhava um bom dinheiro. Nunca o vi “Borracho”, e notava que tinha uma paixão pela gaita, como se fosse uma namorada ou noiva, e sempre tinha um ditado para qualquer coisa que lhe perguntasse Uma vez eu perguntei o que ele achava de um sujeito que tinha aparecido no baile e que está agradando as “gurias” pois era bem vestido, se gabava que tinha muito estudo e dinheiro.
“Me diz uma coisa gaiteiro! será quer esse “cuera” é mesmo dos Buenos? Diz que doma, laça, peala e até trova.”
Olha “Sãocristão” eu não posso dizer nada, pois isto é como lobisomem, quem viu não diz que viu, e quem não viu diz que viu. “Eu acho que ninguém pode gabar o burro antes de passar o banhado.”
Uma ocasião eu fui num casamento com o Padre, e lá estava ele, alegre e faceiro. Durante o dia era festa e festa, e ali pelas três da tarde, depois do churrasco, e de muito vinho, o Padre disse, vamos começar o casamento.
Eu não sabia quem era a noiva, mas o noivo eu conhecia, era o mesmo sujeito que se dizia domador, laçador e pealador, e ainda trovava. Quando eu vi a noiva, logo reconheci, pois era a “Evinha” uma moreninha que tinha sido minha namorada na cidade. O gaiteiro muito gozador me disse: “Não vai chorar Sãocristão”, mas o “Cuera te ganhou de mão”.
Eu fiquei quieto, e fiquei só olhando para ele, como quem diz, não faz mal, tem outras por aí.
O pior de tudo aconteceu durante a cerimônia, e eu até acho que a coisa teria ficado feia se o padre não estivesse ali.
Na hora de colocar as alianças, um piazito trouxe três alianças, e deixou cair no chão sendo que uma rolou e ficou nos meus pés.
Com a histórias das três alianças, um “Cuera” já a meia guampa gritou: “A noiva tem dois noivos”, ao que o Gaiteiro emendou: “E o outro é o Sãocristão”!
Aí a coisa fedeu. A noiva me reconheceu, deu um sorriso para o meu lado, e o noivo não gostou nada, e veio para o meu lado como quem quisesse briga e o pai da noiva, também me reconheceu, pois além de tudo era padrinho de um irmão meu e disse para o noivo. “Acomoda-te rapaz” isto foi coisa de algum gaiato que tá com “ciumeira”, e o Ajudante do Padre é filho de um amigo e compadre meu e sempre foi amigo da tua noiva. E tem mais é também trovador, e já que tu vives te gabando que trova, em vez de brigar, o desafia para uma trova aqui mesmo. Vamos ver se tu és bom na rima, pois até agora não te vi domar nem pealar.
Eu olhei pro gaiteiro e pedi que tocasse um “MI MAIOR DE GAVETÃO”, que é a melodia própria para a trova campeira.
Bueno quando o gaiteiro tocou as primeiras notas o noivo pediu licença, e até hoje estão esperando por ele. A noiva, depois eu fiquei sabendo gostava de outro, e só aceitou casar com o gabola, porque este convenceu a mãe da mesma que tinha muito dinheiro e era tudo o que se gabava.
O gaiteiro me olhou com cara de malandro e disse: “Eu não te falei que não se pode gabar o burro antes de atravessar o banhado”.
O casamento não saiu, a noiva deu graças a Deus, e o pai dela também, pois não gostava muito do conversador. Mas como era um homem bonachão, gritou bem alto, não tem casamento mais, no entanto, vamos festejar a felicidade da minha filha que se viu livre de um vigarista que queria dar “um braghetasso”. “O gaiteiro já tá pago, o boi e as ovelhas já tão carneados e assando” aproveitem porque esta é a minha única filha, e eu posso garantir que o rapaz que ela gosta, tá aqui, e na certa vai pedir para marcar o casamento meio logo. Foi aí que apareceu um jovem meio encabulado, e falou para o Pai da noiva. Se o senhor permite eu gostaria de dançar com a Evinha, pois “nóis tava namorando escondido e a ideia das treis aliança foi dela”. Só que o outro noivo não é o “Sãocristão”, sou eu mesmo.
O pai da noiva disse que fazia muito gosto, e mandou o gaiteiro abrir o fole e começou o baile.
A festa foi até o outro dia, e até eu dancei com a noiva, e o Padre como sempre se encheu de vinho e cerveja, e dormiu, só acordando lá pelas dez da manhã, quando rezou uma missa e fez alguns batizados. Eu como sempre acabei fazendo a vez de chofer. Na saída o gaiteiro, falou: Vocês podem me levar até a cidade, eu não tenho nenhum baile por aqui e hoje vou tocar no CTG.
Foi aí que o Padre perguntou ao Gaiteiro se ele era casado ou solteiro, e se tinha namorada.
O Gaiteiro então resolveu contar a sua história:
Pois sabe seu Vigário, a minha namorada é esta aqui, disse abraçando a gaita. O Senhor não viu ontem o fiasco que foi aquele casamento que não saiu. A Guria tinha um noivo, mas gostava de outro. Eu sempre fui trabalhador, comecei ajudando o pai nas lides campeiras. Meu velho era alambrador, taifeiro, esquilador e outras ”cositas, mas”, como dizem os castelhanos.
Comecei ajudando nas construções de cercas quando tinha meus nove ou dez anos, eu alcançava as ferramentas que eram usadas, e fazia a boia para o pessoal. Fiquei “Doutor” em preparar carreteiro com charque.
O Senhor sabe né, como todo o piá de campanha eu não pude estudar, mas aprendi a ler e escrever com a minha mãe. Ela não era muito letrada, mas sabia ler e escrever muito bem, pois tinha ido ao colégio da cidade até o “Quinto Livro”. Lembro-me que eu tinha uma pedra de escrever (lousa antigamente usada em lugar de caderno) e quando chegava em casa depois do serviço, ela me ensinava as letras e os números e a fazer contas.
Mas voltando às namoradas, eu posso lhe dizer que namorada firme eu nunca tive, para passar o tempo. O caso é que quando eu dei baixa do quartel, conheci uma guria na cidade, e começamos a namorar, ir ao cinema e dançar nos bailes.
Ela parecia gostar de mim, então eu pedi ela em casamento e ficamos noivos, porém sem marcar casamento, pois eu queria juntar dinheiro para poder fazer um “Rancho” para morar, Como precisava trabalhar, eu às vezes ficava até uns quinze dias sem ver a minha noiva
Fui trabalhar de novo no campo, como alambrador e na safra como esquilador, pois tinha apreendido a usar a tesoura de esquilar com o meu pai. Fui de lugar em lugar, fazendo “changas” e consegui juntar um bom dinheiro.
Aí, fui prá cidade para ver a “Bendita da Noiva” e quando cheguei a casa, notei que ela não tava, perguntei prá futura sogra onde andava a guria e ela me respondeu, muito constrangida, que a filha tinha fugido de casa com um viajante que apareceu na loja onde ela tinha arrumado um emprego.
No começo eu fiquei muito chateado, mas despois pensei melhor, e me acomodei.
Aí é que vem o bom da história seu Vigário.
Como eu tinha juntado um bom dinheiro, resolvi comprar esta “gaita e um cavalo aperado” e paguei um gaiteiro, o “Dario do fole” que era famoso e ele me ensinou.
Pois “oia” parece inté que foi coisa de Deus, pois se o diabo da mulher resolveu arrumar outro, me abriu os “oio” e eu em veiz de gastar dinheiro com o casamento, com a danada, ressorvi me casá com esta gaita, e tô ganhando dinheiro. O Senhor não acha que eu tô certo. Fiquei livre, desimpedido e solteiro. Posso agora “Gauderiar” a vontade sem compromisso.
Oiá vigário, eu sei que o senhor é um homem sabido, e conhecedor da vida, mas vou lhe dar um conselho. Se um dia quiser tirar a batina, e viver no mundo que não é da igreja, nunca invente de se casar, a melhor coisa do mundo é ser livre e desimpedido, pois a vida é curta, e o temo passa sem que a gente possa passar o tempo.
O Padre que era muito conhecedor da vida, pois havia sido militar, chegou a sargento, começou a rir e disse:
“Pois olha Gaiteiro, eu vou falar uma coisa que nunca falei prá ninguém, eu hoje sou Padre porque passei o mesmo que tu passastes. Eu também tive uma noiva, e ela me trocou por outro. Mas só que em vez de comprar uma gaita, fui pro seminário, pois lá na colônia era o único meio que se tinha para poder estudar.
Mas estou satisfeito com minha “Batina” e como tu estás vendo, sou feliz, e curto a vida com estas festas que compareço para ver se faço os outros felizes, e tenho oportunidade de conhecer gente como tu, que sabe que a felicidade está nas coisas mais simples da vida.
Aquela história me deixou bastante pensativo, pois nunca havia imaginado que o mundo pode nos trazer tantas surpresas.