Meu primeiro Cavalo

MEU PRIMEIRO CAVALO.

Corria o ano de 1946, devia eu ter aproximadamente oito anos de idade. Lembro que morávamos na pequena São Gabriel, meu pai, era barbeiro na época, e morávamos na rua da Ponte, hoje rua Marechal Mascarenhas de Moraes, em homenagem ao Comandante brasileiro da FEB, que havia nascido na mesma rua.

Lembro que na barbearia de meu pai, freqüentavam muitos gaúchos que vinham de fora, montados em belos cavalos, para cortarem o cabelo, fazer a barba e prosearem, contando causos e bravatas, coisa comum do pessoal da Campanha.

Eu me oferecia para cuidar dos cavalos ( como fazem hoje os “flanelinhas”, com os carros), em troca de um “Getulinho”, que era uma moeda de “cem réis”, que apesar de já ter sido criado o cruzeiro e o centavo, ainda valiam. Outras vezes, me deixavam dar uma volta à cavalo.

Eu ficava pensando, será que um dia vou poder comprar um cavalo destes, para ir para o colégio, ou passear, até o “arroio” pescar lambari, ou sair pela estrada do banhado do “Piray” e caçar “periá” (nome que dávamos às Preás).

Tomei uma decisão: Vou juntar dinheiro, e um dia compro o meu cavalo.

Foi então que depois da aula, que terminava às onze da manhã, eu ia à estação e ajudava os que chegavam, a carregar as malas, para ganhar mais uns trocos. E no fim de semana, ia ao Clube de Tênis, trabalhar de “Marrecão”, como eram chamados os piás que juntavam as bolas e devolviam aos jogadores.

Quando chegava algum parque de diversão ou circo, lá estava eu, perguntando se queriam ajuda, em troca de entrada para o espetáculo, ou de alguns trocados. Uma vez cheguei até fazer o papel de um “palhaço, num circo que chegou na cidade. Lembro que era o” Zoológico Continental Circo “dos Irmãos Robatini”.

E assim, fui juntando dinheiro, inclusive economizava o dinheiro que algumas vezes o pai dava para nós, eu e meu irmão mais novo, irmos ao cinema, sacrificando o prazer de ir ao “Matinee” nos domingos. Mas até conseguir o total para um cavalo eu vi que ia demorar. Uma vez perguntei ao pai, quanto eu tinha na Caderneta da Caixa Econômica, que era um livreto verdinho, onde anotavam os depósitos, e que ele havia aberto para mim, a meu pedido, pois eu não podia, claro pela idade, abrir conta sozinho. O pai, que era muito brincalhão me disse: “Já dá pra comprar dois dentes do teu cavalo”. Fiquei meu triste, mas disse comigo mesmo, ainda vou juntar o suficiente.

Um dia, jogando bola na pracinha dos eucaliptos, um amigo meu, que trabalhava na Companhia Telefônica me disse que estavam precisando de um “guri” para entregar fonogramas, no horário das seis da tarde até às dez da noite. O pagamento era de Trezentos Reis (como chamávamos os então vigentes trinta centavos), por cada fonograma entregue. (mais alguma gorgeta que ganhávamos)

Meus olhos brilharam, e perguntei a ele, com que eu poderia falar para arranjar aquele serviço. O Milton, este era o nome dele, disse fala com o seu Homero que é o Gerente. Aí eu perguntei, o Grandão bigodudo aquele, marido da Dona Zoé . Ele mesmo, respondeu o meu amigo.

Ah! Eu conheço, ele é freguês da barbearia do pai. Vou perguntar se o pai deixa eu ir trabalhar lá, e se ele concordar vou correndo na Telefônica para conseguir o serviço, aí eu posso juntar mais dinheiro para comprar meu cavalo.

E realmente, fui e consegui o emprego. Mas não tinha ainda pedido licença para o pai. Quando ele soube, me perguntou: Escuta guri, como é que tu vais trabalhar e ir à aula? Eu então respondi que o serviço era de noite, e que de dia eu não iria mais pegar mala na estação e nem ir ao Tênis pegar bola, pois ia ter um salário e ainda ganhar gorjetas nas entregas dos fonogramas. Eu garanto que até o fim do ano, eu já vou ter dinheiro para toda a cabeça do cavalo. O pai entendeu e, como era brincalhão, disse, bom então pode ir, mas não para com o colégio, porque senão em vez de comprar um cavalo, tu vira um burro..

Minha mãe quando soube, ficou muito preocupada, pois eu não era muito afoito aos estudos. ““Então ela colocou uma condição; “Podes ir trabalhar, mas se tu” rodares”, não pode mais entregar fonogramas e nem que ganhe na loteria vais poder comprar o teu cavalo”.

Aí eu comecei a me esforçar também no colégio, e consegui sempre tirar boas notas nas sabatinas mensais.

Eu era o décimo de doze irmãos.Três haviam falecido antes de eu nascer, e ficamos em quatro irmãos homens e cinco irmãs mulheres, e como o primeiro dos homens estava no quartel, o segundo tinha ido para um seminário, tocavam para mim as tarefas de ir à venda, buscar lenha, comprar querosene para o lampião, ir ao açougue e na padaria, pois o mais novo que eu, era um pouco adoentado, tinha bronquite asmática, e as gurias, como era comum na época não podiam sair para ir à venda, só faziam os serviços de casa, ajudando a mãe ou indo ao colégio.

Um dia, meu pai me mandou na Confeitaria Esmeralda do seu Antenor, que ficava perto da nossa casa, com uma nota de vinte mil réis, que ainda era usada, e disse que pedisse pra trocar por uma de dez, uma de cinco, duas de dois e uma de um, para dar o troco para um freguês, que tinha feito a barba, e pago o valor do serviço, que era de dois mil réis, com aquela nota.

Fui lá, e quando, recebi o troco, olhei para o seu Antenor e disse: “Seu Antenor, tá errado o troco”. Como que tá errado guri! “Deixa de ser malcriado, logo tu, que era tão comportado, agora vem me fazer desaforo.”

Seu Antenor, respondi o senhor me deu dinheiro demais. Cala essa boca guri, gritou ele, acha que não sei contar dinheiro?

Não, não estou achando que o senhor não sabe contar, é que em vez de me dar uma nota de dez mil réis, o senhor me deu esta “pelega” de quinhentos mil réis.

Naquela época as notas de quinhentos mil réis, que ainda estavam em circulação, eram muito semelhantes às notas de Dez cruzeiros, que haviam entrado em circulação recentemente.

O Seu Antenor, então simplesmente pegou a nota, e meteu a mão no vidro de balas, e me deu algumas. Eu não entendi muito aquilo, mas aceitei contente, sem me dar conta de que aquelas balas era um pedido de desculpas, pois não ficava bem, na época, uma pessoa mais velha pedir desculpas a um piá.

Voltei para casa, e entreguei o dinheiro para o pai e contei a história, e os que estavam na barbearia, ouviram e começaram a me elogiarem, uns, e recriminarem outros, dizendo, mas que guri mais bobo. Podias ter comprado um cavalo e ainda sobrava muito dinheiro, para os arreios com aquela “pelega”. Eu não entendi muito bem, e olhei para o pai, e este, deu um xingão nos que tinham me recriminado, e me disse na frente de todos:

Olha meu filho, tu fizeste a coisa certa. Pois mais vale alguns caramelos honrados, que muito dinheiro camuflado.

Aquilo me calou fundo e até hoje, conto esta história para todos, dando um testemunho de que a honestidade, sempre trás o conforto para a consciência.

Isto aconteceu mais ou menos no mês de outubro, e eu esqueci o fato, e continuei trabalhando na telefônica e indo ao colégio, onde comentavam o fato, pois saiu a notícia até no Imparcial (que era o jornal da cidade).

Um dia, vi o seu Antenor, chegar lá em casa, e enquanto fazia barba e cortava o cabelo, conversava com meu pai, alguma coisa que eu não escutava direito. Somente, ouvi quando meu pai, parando com o trabalho dele, disse ao seu Antenor: “Não precisa, o guri, já recebeu a recompensa, com o reconhecimento do ato, e das balas que tu deste pra ele”. Mas o seu Antenor retrucou: “Olha barbeiro, eu sei o que estou fazendo, tu trata de terminar o meu cabelo, senão não venho mais aqui. Aí o meu pai disse, e eu não compro mais pão na tua padaria, e riram o dois, como era de costume, com as brincadeiras de meu pai”.

O Natal estava chegando, e eu como toda a piazada da rua da ponte, comentávamos o que iríamos ganhar. Os filhos dos fazendeiros, diziam: eu vou ganhar uma bicicleta, outro, filho do dono da venda, dizia eu vou ganhar uma bola de couro, eu dizia que não sabia, pois não tinha certeza se o pai poderia dar algum presente para todos os filhos, que eram nove. E ainda, sabia, que no fim de ano o pai, com algumas economias que fazia, gostava de festejar o Natal e o Ano Novo, com boa comida e bebida com a família.

Na noite de Natal, como sempre, após fazermos a oração de agradecimento, que minha mãe costumava fazer, fomos comer e tomar refresco (aquele xarope que se misturava com água) e o pai e a mãe com os mais velhos, vinho. Em seguida fomos abrir os pacotes de presentes que cada um tinha ganhado. Lembro que ganhei um avião de madeira, que meu padrinho havia enviado de Porto Alegre, aquilo me deixou radiante, pois tinha certeza que ninguém ganharia igual.

Na manhã seguinte, sai para a rua, para brincar com meu aviãozinho de madeira, e vi debaixo do cinamomo em frente de casa, um Potrilho Rosilho Negro encilhado. Pensei que era de algum freguês do pai, mas depois lembrei que não podia, pois o pai não abria a barbearia no Natal.

Daí a pouco, notei meu pai e seu Antenor, conversando na frente da casa, e o meu pai balançava a cabeça, como quem diz não. Imaginei que o seu Antenor queria que ele abrisse a barbearia, e sai dali e continuei brincando com o meu aviãozinho. Não demorou muito, o pai me chamou para junto deles, e pediu que chamasse meus amigos para perto.

Quando juntou a turma toda, o seu Antenor disse:

Olha Guri: o teu pai não queria aceitar este presente. Eu perguntei: Que presente o senhor queria dar pro pai?

Ele respondeu, não é pro teu pai, este velho rabugento, é para ti. E se ele não deixar tu aceitar este cavalo aqui, eu vou ter que dar uma “sumanta” de Rabo de Tatu nele”.

Meu pai disse, olha Antenor, se tu estás dando como recompensa, eu não aceito, mas se é para satisfazer tua vontade, (aí vi uma lágrima correr nos olhos de meu pai e outra nos do seu Antenor) eu aceito, pois o guri, estava trabalhando na telefônica para comprar um cavalo.

O seu Antenor então disse: Bom, agora ele não precisa mais entregar fonogramas a pé, pode entregar a cavalo.

E tem mais, gurizada, todo mundo pra confeitaria que hoje tem doce de graça para todo o piazedo; Imaginem a felicidade da turma!

Eu continuei a entregar meus fonogramas a cavalo, e juntar meu dinheiro que o pai colocava na caderneta da Caixa Econômica.

Este dinheiro me ajudou, mais tarde a comprar o Uniforme e os livros, quando passei a estudar no Ginásio, onde passei no Exame de Admissão com o 1º lugar da turma.

De tudo isto, ficou na minha memória que, a honestidade é obrigação, e que o trabalho com seriedade, não atrapalha o estudo de quem quer ser alguém na vida.

Aquele foi o Natal mais feliz que tive, tanto pelo presente, como pelos conselhos de meu pai, que até hoje trago comigo. E pelas palavras de minha mãe que me dizia. “Estuda, porque o saber não ocupa lugar, e ninguém te pode arrancar. Graças a eles, consegui nortear minha vida dentro da honestidade e trabalho.