O Padeirinho

O Padeirinho,

“Meu pai sempre nos dizia.” Ninguém sabe o dia de amanhã. O que hoje é Rei, amanhã pode ser escravo.”

Eu tinha meus 10 anos, e era o décimo de 12 irmãos, embora três houvessem morrido quando pequenos, e convivia com os outros guris da cidade. Havia os mais abastados, filhos de famílias ricas, os filhos de comerciantes, os remediados, e os menos afortunados, pois naquela época pobres mesmo, não havia entre a turma.

A maioria dos guris e das gurias, estudavam no grupo escolar, e os mais afortunados estudavam no colégio Marista, sendo que as meninas estudavam no colégio das irmãs que eram estabelecimentos pagos.

Nossa turma era parelha, embora houvesse alguns que por pertencerem a famílias abastadas, às vezes se julgavam mais importantes. Porém na hora das partidas de futebol, na “pracinha dos eucaliptos” ou quando fugíamos para o arroio tomar banho, todos ficavam no mesmo pé de igualdade.

Um dia apareceu na turma, um piá magrinho, com os pés descalços e as roupas surradas, como se fossem as únicas que tivesse. A turma, embora não soubesse quem era, o recebeu e convidou para jogar, pois o nosso time estava com falta de um jogador.

Com o passar do tempo, fomos nos acostumando com o novo amigo, mas estranhávamos que ele não falava muito e também não estava no colégio. Era realmente bastante calado, e nunca dizia o nome.

Um dia ele não veio e a turma resolveu procura-lo lá na vila Maria que era onde o mesmo morava. Eu e mais três amigos fomos lá e ao chegar uma senhora bastante jovem, nos recebeu com um sorriso e perguntou-nos o que queríamos. O Queré se adiantou, pois era um dos mais velhos se era a mãe do nosso amigo. Ela respondeu, mas qual amigo, como é o nome dele?

Foi aí que todos ficaram se olhando, pois não sabíamos o nome e nem o apelido (naquele tempo todos tinham um apelido) como, aliás, hoje também seja igual. Ficamos sem saber o que dizer, aí o “Queré”, que era um pouco esperto, e tinha a mania de botar apelido em todo mundo, disse, “nós não sabe o nome” mas eu chamo ele de “Pão d’agua”, porque sempre trás no bolso um pedaço de pão para cada um de nós numa sacola onde ele também trás um avental branco, que eu acho que é o uniforme do colégio dele.

Aí a senhora, deu uma risada, e disse: “Pois é o meu filho mesmo, só que aquele avental, não é do colégio, é da padaria onde ele trabalha. Ele não pode ir no colégio porque desde que o pai dele morreu, me ajuda no sustento da casa e dos dois irmãozinhos.

Aqueles pães que ele trás na sacola ele também trás para casa, pois trabalha na padaria, apesar do tamanho dele, que é franzino, já tem 12 anos.

Naquele momento, eu, o Queré, o Zoinho e o Zoreia ficamos quase mudos, pois embora nossos pais não fossem ricos, podíamos estudar e procurar um futuro mais tarde.

Saímos arrasados dali, mais ainda por saber que aquela senhora lavava roupa no arroio para poder ajudar no sustento da casa. Meu Deus pensei “Agora a mãe do nosso amigo não vai mais deixar ele brincar com a gente”. Será que ele não vai ficar chateado porque fomos procura-lo e ficamos sabendo que ele era padeiro.

Vale aqui fazer uma referência, sobre as profissões que na época eram tidas como depreciadas. : “Padeiro, sapateiro, açougueiro, lixeiro, changueiro entre outras”.

Para nossa surpresa, quando foi no sábado o piá apareceu da mesma forma de sempre, de pés descalços com a sacola pendurada a tiracolo, e entrou na turma. Foi quando o “Queré chegou o disse prá ele: “E daí padeirinho, vai joga hoje, ou só veio trazer o pão prá nóis? Ele riu e disse, agora gostei, tu não me chamou de pão d”agua. Padeirinho é melhor, pois lá na padaria todos me chamam assim.

Ficamos contentes com a volta dele, porém, o Tião, filho do dono da loja “Casa Azul” nos chamou de lado e disse.:”Eu não jogo mais, não vou me misturar com um padeirinho qualquer, eu acho que pobreza pega.”

O Zoreia e o Zoinho pularam e disseram: então vai embora, porque tu sempre queres ser mais que todos aqui, e pensa que é melhor que todo mundo, só porque o teu pai é rico. Não sabe que o dinheiro termina e um dia teu pai pode ficar pobre também. Pois se quer ir vai, mas nós ficamos e o padeirinho continua no time.

Desde aquele dia, o Tião sumiu e nós continuamos brincando, jogando futebol e fugindo para o arroio, menos o padeirinho, depois do futebol ia para casa, pois tinha que trabalhar.

A sorte de cada um e o destino de todos já vem traçado. O tempo passou, fomos crescendo, mas sempre nós encontrando, até terminarmos o primário. As coisas foram melhorando, e a nossa turma entrou no ginásio, onde terminamos e cada um foi pro seu lado.

O padeirinho nunca mais vimos, pois a cidade cresceu e os estudos nos tomavam tempo, nós queríamos nos formar e ser alguém na vida. O Queré sumiu, o Zoinho e o Zoreia também. Continuei estudando e consegui um bom emprego, e pude cursar uma faculdade.

O Tião também sumiu, pois a loja do pai dele foi a falência, e se matou. Não ficamos sabendo para onde ele foi.

Mas antes disso, quando chegou a idade de ir “servir”, ou seja, ir para o quartel, encontrei o Tião que também ia servir, estava muito diferente, chegou no quartel com umas calças muito velhas, uma camisa desbotada e calçando umas alpargatas surradas pelo uso.

Quando fomos incorporados, ficamos no mesmo pelotão, foi aí que para minha surpresa, também o Zoreia e o Zoinho estavam se apresentando. A felicidade foi tanta, que não sabíamos conter a alegria. Mas e o Queré, o que será que houve com ele, afinal era dos mais velhos. Foi aí que a coisa ficou completa. Apareceu um ‘Sujeito alto, fardado e com divisas de cabo gritando: vocês aí, pensam que tão na pracinha jogando bola ou tomando banho pelado no arroio. Vamos pegar cada um uma enxada e capinar o campo prá nóis baté uma pelada.”

Aquele “nóis” soou nos nossos ouvidos como música, pois era inconfundível a voz do Queré. Foi então que nos sentimos novamente crianças, e as e lembranças vieram a tona.

Lembra quando nóis ia colher pitanga lá na chácara do Dr. Felix, e que um dia fomos corridos por um touro brabo? Bah e aquela vez que nos fugimos pro arroio e caiu uma chuva de pedra, que tivemos que nos esconder na igreja, fomos na sacristia e tomamos todo o vinho do padre, que até o Zoreia ficou gambá e vestiu a batina. E tu Coruja, tinha esquecido que este era o meu apelido, por causa dos meus olhos grandes, te lembra aquela vez que fomos roubar goiaba na casa do Turco Quirino e ficaste pendurado na grade e teve que rasgar a calça e ficou com a bunda de fora.

Aí o Queré, lascou uma pro Tião: “Pois é tu dizia que pobreza pega, pois pegou em ti. Lembra quando saíste da turma por causa do Padeirinho que era pobre.? Que como o pai do Coruja dizia:’ Ninguém sabe o dia de amanhã, e o que hoje é rei amanhã pode ser escravo”.

Então o Tião disse: “É verdade, até hoje me arrependo, e se um dia encontrar o Padeirinho vou pedir perdão prá ele, pois ele era uma pessoa humilde, e muitas vezes deixou até de comer para distribuir o pão para a turma.” É a vida trás muitas surpresas.

A senhora dá licença dona. Disse aquele homem fardado e com divisas de primeiro sargento.

Pois não respondeu ela, o senhor pode entrar. No que eu posso lhe servir, perguntou, ao que o sargento respondeu: Eu soube que a senhora lava roupa para fora, e o pessoal ali do quartel me falou que a senhora além de lavar roupa ainda prega botões e faz algumas alterações nas fardas dos recrutas.

Eu fui transferido há pouco para cá, não conheço ninguém, a minha esposa morreu faz cinco anos e eu não tenho filhos ou filhas, por isso moro sozinho e não tenho como arrumar a minha casa e lavar minhas roupas.

A propósito, vejo que a senhora tem filhos, e seu marido trabalha onde, perguntou. Ela baixou a cabeça e disse que também era viúva, e que seus filhos já estavam crescendo e necessitavam estudar, mas não tinha condições de mantê-los sozinha, por isso o mais velho trabalhava na Padaria para ajudar em casa, e assim os menores podiam ir no colégio.

Diga-me uma coisa: A senhora lava roupa o dia inteiro, ou teria tempo para fazer algum serviço extra, como por exemplo trabalhar como doméstica em minha casa, alguns dias na semana? Não seria muito pesado o trabalho, pois onde eu moro não tem luxo, e uma casa simples e fica aqui perto, logo depois do quarte e eu só vou em casa para dormir, pois almoço no quartel . Posso lhe pagar por mês ou por dia, como a senhora achar melhor.

Ela nunca havia imaginado em trabalhar como doméstica, mas alguma coisa lhe dizia, que aquele homem era honesto e sincero. Mas ao mesmo tempo sentiu que seu coração deu um salto de contentamento.

Ela aceitou o emprego e começou a trabalhar na casa do Sargento Carlitos, este era o nome dele. Com isto, o Padeirinho pode começar a estudar no colégio noturno, pois já estava com 15 anos, e assim que pode tentou fazer o art.91 (que na época correspondia ao Supletivo), pois embora sempre trabalhasse, aprendeu a ler e fazer contas sozinho, e com a ajuda do pessoal da padaria.

Passados alguns meses, a amizade entre o sargento Carlitos e dona Zilda, este era o nome da mãe do Padeirinho, foi fortalecendo e acabou em namoro, noivado e casamento.

Um dia o Sargento chegou em casa com uma farda nova, e disse que havia sido promovido, pois fizera um curso de especialização que lhe deu o direito de ser promovido a tenente. Mas, para isto teriam que ir para outra cidade, pois a transferência era um dos requisitos para a promoção.

Os filhos de dona Zilda já estavam crescidos, e o padeirinho estava terminando o curso ginasial e estudando para fazer concurso para a escola de Cadetes, que naquela época estava localizada em Porto Alegre onde hoje é o Colégio Militar e onde um dos requisitos era completar o Ginásio.

Com o casamento da mãe com o sargento Carlitos, agora já Capitão, pode parar de trabalhar e dedicar-se aos estudos.Esforçava-se bastante para não decepcionar sua mãe e o Padrasto, a quem aprendeu a respeitar como pai, tal qual os seus irmãos.

Pois o Padeirinho terminou o Ginásio, foi para Porto Alegre, fez o exame para a escola de cadetes e foi aprovado em primeiro lugar.

Porém, não parou por aí, já matriculado na Escola de Cadetes, notabilizou-se e terminou o curso com distinção, e foi aprovado para frequentar a Escola Militar das Agulhas Negra, em Rezende, no Rio de Janeiro, onde também sempre mostrou-se estudioso, obediente e humilde, granjeando a simpatia de seu professores e superiores.

Quando terminou a Academia, teve o prazer de receber a Espada de oficial das mãos de seu Padrasto, agora já Coronel, e ser abraçado por sua mãe, e seus irmãos que também estudaram e um era advogado e o outro estava estudando veterinária, pois queria entrar no exército como o Padeirinho.

Passados alguns anos, o padeirinho foi se salientando no exército e chegou rapidamente ao posto de Capitão, sendo designado para comandar uma Companhia na cidade onde nasceu. Como saíra muito jovem não foi reconhecido por ninguém. Por ninguém não.

Um dia logo que chegou para assumir seu posto, ouviu uma voz conhecida, que gritou: “Alguém pode me conseguir um Pão D’Agua”.Aquela voz era inconfundível, e ele encheu os olhos de lágrimas, pois reconheceu o “Queré”, que servia na mesma companhia e tinha feito curso de cabo, sendo promovido.

Ele depois daquilo, embora não tivesse respondido nada, e feito que não ouvira, pois o fato se dera no pátio sem que ninguém desse atenção, pois o cabo Queré era conhecido como brincalhão.

Quando chegou no gabinete do comando, pediu ao seu ajudante de ordens, que mandasse o cabo que tinha gritado, vir até ele. O ajudante de ordens que não sabia a origem do Comandante pensou: O Cabo Queré tá ralado. O Capitão pelo jeito, não gosta de piadistas, nem quero ver.

Cabo Orlando, pois este era o nome do Queré, te apresenta imediatamente no gabinete do comandante e te prepara, pois a coisa tá preta por teu lado.

O Queré, primeiro se assustou, pois pensou que tinha feito uma baita duma “cagada”, e foi direto ao Gabinete. Lá chegando bateu na porta e ouviu um sonoro “Entre”. Seu coração bateu forte de susto, quando ouviu, fecha esta porta rapaz.

O Comandante estava de costa para a porta, e de repente abriu os braços e disse: “Então Queré me reconheceste seu danado”, nunca esperei em ver alguém tão amigo de início. Tu continuas o mesmo não. Só falta agora me chamares de Capitão Padeirinho pra completar.

Qual a tua especialidade aqui na companhia? O que tu fazes? E qual teu pelotão.

Ora Capitão a minha especialidade é rádio operador, eu tiro serviço na RAD 300, para a comunicação. Sou do Pelotão Rádio, que é comandado pelo Tenente Guimarães, que é um carrasco, feio e chato. Desculpe, mas é a verdade. Ele tem a cara toda marcada e eu o apelidei de Carunchado.

Tu não tens jeito, continuas apelidando todos. Mas daqui em diante vais ser meu “Ordenança” e ficar sentado ali naquela mesa ao lado do ajudante de ordens, e vais ser também meu motorista.

Pô padeirinho, desculpe Capitão, não sei como lhe agradecer, e pode ter certeza que vou me esforçar ao máximo para não decepcioná-lo..

Tá bem, mas teu primeiro compromisso, vai ser dar uma olhada nos novos recrutas e vir me dizer se tem algum conhecido do nosso tempo. Claro que eu não conheço mais ninguém, pois a cidade aqui cresceu e as pessoas mudaram muito também.

Mas voltando ao encontro dos amigos, como o Queré dizia, ao Tião, tua lembras que o Pai do Coruja dizia, “Aquele que hoje é Rei Amanhã pode ser escravo” né. É verdade Queré, quero dizer Cabo Orlando, se um dia eu encontrasse o Padeirinho ia pedir, não desculpas, mas perdão, pois o que fiz para ele foi mesmo uma vergonha. Eu paguei meu pecado, pois tive que trabalhar para ajudar minha mãe depois que o pai se matou. Realmente a vida trás muitas surpresas.

Aí o Queré lascou: “E a maior vem vindo aí, olhem quem está chegando é o novo Comandante que quer conhecer vocês”.

Nós olhamos e ficamos quietos, até que ele chegou até nós e disse:

Quero saber o nome de cada um e o apelido. Pois do cabo eu já sei, e não quero ter surpresas quando chamar um e vier outro bancando o engraçadinho.

Aquilo nos deixou perplexos, pois vimos que o Capitão não estava brincando e declinamos nossos nomes:

Eu sou o Fernando disse, Eu sou o Nelson, e eu sou o Celmo.

Pois bem, de agora em diante o Fernando é “Coruja” por causa desses olhos grandes. O Nelson que é meio vesgo é o “Zoinho” e o Celmo com essas orelhas de elefante é o “Zoreia”.

E tu Queré, que tinha o costume de apelidar todo mundo o que achaste? Acertei!

Pô Capitão esse era o apelido deles quando Piás, o Senhor acertou em cheio. Mas e este aqui, disse o Queré apontando para o Tião, como é que o Senhor vai chamar ele.

Não sei, pois parece que ele não gosta de pobre, acho que vou tirar ele do Time.

Foi aí que tudo degringolou. O Tião começou a chorar se ajoelhou e disse: Meu Deus, tá acontecendo comigo o mesmo que eu fiz com o padeirinho, parece até castigo. Mas ai o Capitão pegou nas mãos dele e disse. Tu não queres um pedaço de Pão D’Agua?

Foi então que reconhecemos o Capitão. Que outro não era senão o padeirinho, que nós nunca mais havíamos visto.

O Tião chorando mais ainda se ajoelhou novamente e disse: “Me perdoe, por amor de Deus, eu até hoje me arrependo daquilo, e paguei meus pecados. Meu pai foi a falência e se matou, eu fiquei tomando conta de meus irmãos menores, e agora vim para o quartel, para ver se consigo fazer carreira e ajudar minha mãe que já está ficando velha e não pode mais lavar para fora.

As lagrimas correram no rosto de todos nós, inclusive do Capitão, que então disse: “Não te preocupes, que eu não fiquei com raiva de ti. Ao contrário senti pena pois pensava muito no que o Pai do Coruja Dizia: “Ninguém sabe o dia de amanhã. “O que hoje é Rei amanhã pode ser escravo”

Eu complemento dizendo, o que meu Padrasto dizia. “Trata teu subordinados com carinho e respeito, pois assim terás o carinho e respeito de teus superiores.”

Vejam bem meus amigos, hoje eu sou o Comandante, amanhã posso ser transferido para um regimento e serei subordinado.

Realmente a vida é como uma curva na estrada, ninguém sabe o que vem depois.