OS VAQUEIROS DA ILHA DO BANANAL

OS VAQUEIROS DA ILHA DO BANANAL

MOURA LIMA

Manhã de céu claro pras bandas do nascente, prenúncio do veranico de janeiro, que rasgava estirão naquele mundão verde de canarana da ilha do Bananal. E lá no final da varjota, nas confluências do rio Toriberó, visualizava-se a fazenda Casco de Anta, do major Capuba, grande criador de gado daquele sertão bruto. O sol ia alto, na manhã festiva, e no pátio da fazenda as negras, crias da casa, ritmavam a mão-de-pilão, na soca da carne-de-sol, para o preparo da farofa, e os vaqueiros dos retiros, ao longo do lago do Mamão, iam chegando, alegres e ruidosos, nos vistosos cavalos e burros. O major, da alpendrada, deu ordens às mestiças da casa para servirem a mesa aos vaqueiros, para a quebra do jejum Êta farturão! Requeijão, coalhada, cuscuz, beiju, rapadura raspada, carne-assada e farinha na cuia!

A vaqueirama comeu valentemente, até fartar, de bucho cheio como um padre em desobriga. E, satisfeitos, se esparramaram, como puderam, pelo varandão, uns de cócoras, outros de pé, se chafurdaram no prosão ferrado.O vaqueiro do retiro da Garça Branca, mamparreando na fala molenga, brincou com Tião-Esporudo, da Espanta-Macaco:

- Filho só puxa ao pai, quando o pai é ladrão de cavalo!

Tião-Esporudo, que era chamado assim por causa da roseta graúda das esporas, respondeu em riba da bucha:

- Esse velho é tão besta que é capaz de dar benção a cavalo e de chamar jumento de meu pai!

A vaqueirama caiu na gaitada sacudida. E o major Capuba, já saindo para o pátio, deu a ordem esperada:

-Vamos para o campo, que a luta vai ser feroz!

E o pelotão de vaqueiros encourados, na maior alegria do mundo, se abalou pela várzea afora, como guerreiros medievais. A tropa, cheia de energia, batia as patas no chão úmido, espargindo barro e água das poças; bandos de patos, marrecos e garças brancas voavam ao léu; araras azuis pousavam em bandos, numa alegre algazarra, nas copas dos buritizais do veredão, à procura dos cachos de cocos. Quando o sol estava a duas braças de altura, o grupo de vaqueiros chegou às imediações do Lago do Mamão. E o major Capuba, como cabeça-de-campo, mandou o pelotão encourado fazer alto, e determinou:

-Manoel-Pila e João da Binga, vocês dois vão tocar o gado da Lagoa da Sussuapara; Benedito e Dudu Milanga puxem pra Lagoa do Jacaré.E o encontro da vaquejada vai ser aqui, no Lago do Mamão. E, por último, vamos deixar a maloca do Paturi, para a captura final.É a mais brava. Ainda mais, com aquele malvado do Boi do Cão, comandando na frente! Bota tudo a perder!É uma miséria, o capeta da mão furada!

E os vaqueiros ouviram atentos as instruções do cabeça-de-campo, com os cavalos fogosos, arreliando nos coscoses dos freios, e, em seguida, embrenharam-se saroba adentro. Daí a pouco, de espaço a espaço, ao som profundo do aboio, começou a sair das restingas, dos reboleiros o gadame, e, de imediato, era posto no rodeio com a perícia dos homens. De vez em quando, um novilho abusado espirrava, e um vaqueiro esperto o tarrafeava, e o bicho voltava para o rodeio escabreado.

Ao meio-dia, a maior parte do gado estava no rodeio, e o major Capuba ordenou aos vaqueiros mais velhos, com os meninos, que ficassem na sentinela do rodeio, e com os demais vaqueiros partiu para a maloca do Paturi, no encalço do Boi do Cão. A vaqueirama, aos gritos, foi tirando o gado do mato, e, já em campo aberto, o Boi do Cão, um macharrão negro, dos olhos de fogo, disparou de venta aberta pela varjota, e o vaqueiro Ferrão-de-Marimbondo, e Noratão arrancaram no pega-pega do barbatão atrevido. E a experiência de Ferrão-de-Marimbondo falou mais alto, pois atalhou pelo lado esquerdo do campo, fazendo um círculo e voltando de frente pra tocar o bichão bruto.O monstro negro, de pele luzidia, percebendo a manobra do vaqueiro, freou nos cascos, que barro alevantou-se pelo ar. E, fungando, retesaram os largatos e o cangote fornido, numa fúria de força, meteu as aspas pontudas no chão, jogando terra ao vento. E num átimo, com a língua de fora, arremeteu com tudo, na direção do vaqueiro, metendo a guampada por baixo do cavalo, e lá foi pelos ares vaqueiro e alimária! Ferrão-de-Marimbondo, de reflexo aceso, sentindo o perigo, soltou os pés do estribo e voou fora da cela para um lado, e o cavalo para o outro.

E o boi medonho, filho do rabudo, não se fez de rogado, continuou correndo. Noratão fincou atrás e, alcançando-o, meteu lá nele à mão na cauda, tarrafeando-o barbaramente com destreza e o bicho caiu de mocotó trançado, numa queda espetacular! Desceu rápido do cavalo, mas já era tarde, o monstro fungava no chão com o pescoço quebrado da brusca queda. Noratão mandou de imediato Ferrão-de-Marimbondo avisar o patrão pra mandar os cargueiros pra levar a carne do barbatão. E o sangrou em seguida. Abriu a carcaça, tirou o couro e, a partir da costela-mindinha, na direção de cada quarto traseiro, foi modelando as mantas: costela-mindinha, chã de dentro, onde localiza o filé, chã de fora e o patim, visando à fabricação de carne-de-sol. E do quarto dianteiro despencou cinco mantas; lombo da cernelha, posta-gorda, peito, pescoço e pá. O cabelouro tirou com cuidado pra fazer simpatia com as meninas da fazenda, pois a que comesse ficaria bonita quando crescesse, mas tinha que comê-lo pensando em outra moça bonita, pra ficar também.E era a peça de carne mais cobiçada!

O major Capuba, com a morte do boi afuleimado conseguiu tocar a maloca rebelde, sem percalço para o rodeio. E, em seguida botou a gadaria no caminho da fazenda. O guia à frente seguia compassado, atento, olhando para todos os lados, ora apressando a marcha quando o gado acelerava o passo, ora moderando quando afrouxava. É uma tarefa perigosíssima. De repente um camaleão, verdolengo, de crista arrepiada, cruza o caminho da boiada, e só se ouve é um rebôo de tremenda descarga de trovão pelos ares, ecoando de quebrada em quebrada, pela imensidão. É a boiada que estoura, levando de roldão tudo que encontra pela frente. O guia, com equilíbrio de nervos de aço, à frente da fúria do mar de chifres, voa no cavalo sentindo a cada momento, às costas a ameaça presente de um esmagamento de milhares de patas. É preciso manter o sangue frio. Os companheiros correm em círculo ao longe, aboiando, e aos poucos a boiada, fatigada da correria louca, começa a rodar, rodar no círculo dos vaqueiros e volta a tranqüilidade da marcha. Alívio geral no semblante dos rudes vaqueiros.

E com poucas horas de marcha, a boiada apontou na imensidão da várzea.E o pessoal da sede da fazenda deu viva e mais viva! Deviam ser para mais de mil cabeças de gado.

E a vaquejada anual oferece a oportunidade da contagem.Vacas, garrotes, novilhas e bezerros são criados à solta, nos campos e várzeas da Ilha do Bananal.

À frente da boiada, agora calma e ronceira, se destacava o major Capuba, aboiando. À esquerda e à direita os vaqueiros tangendo, e no coice o velho vaqueiro João Pé-de-Chumbo. E o gadame rolava pelo caminho agreste, corpos unidos, chifres para o alto. E quando o gado começava a entrar no curral, um garrote rompeu a guarda dos vaqueiros e espirrou fumaçando no campo.

- Noratão, pega o fujão!

Gritou major Capuba. E Noratão chegou as esporas no cavalo.

- Atalha o bicho! Pega! Pega! Gritou a peonada. E logo o garrote rebelde era laçado e conduzido, aos pinotes, para o curral.

E ao cair da tarde, o major Capuba, com a vaqueirama, já estava no curral apartando as vacas paridas, para evitar o pisoteio dos monjolinhos pelo gado erado.

E, no dia seguinte, aos primeiros raios do sol, teve início a benefício, isto é, a aparação, apartação, castração, serra e ferra.

O velho Alaor Murici, vaqueiro experiente dos sertões do Araguaia, rezador de bicheira pelo rasto do gado, munida de faca bem afiada e de uma capanga de couro a tiracolo, meteu-se entre o gado, acompanhado de outros vaqueiros e foi cortando o sedenho das rezes. A atenção concentrada é exigida, pois, se o aparador errar o corte e ferir por descuido o rabo do animal, o coice é certo. O cabelo aparado é utilizado para fazer cordas e rédeas.

E a vaquejada chega ao momento esperado pelos vaqueiros, que é o da ferra do gado novo, onde é feita a partilha de quatro por um, as famosas crias do vaqueiro.É o momento onde o vaqueiro vai receber o fruto do seu trabalho.De acordo com o combinado, o vaqueiro escolhe à vontade a dele, ou é escolhida através de sorte. Ferram-se as escolhidas pelo vaqueiro, e as restantes, para o fazendeiro.Terminada uma era, passa-se a outra, sucessivamente, até o término da ferra.

O major Capuba sempre deixa para o final da vaquejada a castração, que é, sem dúvida, a parte mais emocionante, com lance de bravura dos vaqueiros, e ordena de riba do mourão:

- É agora que a onça vai beber água, e cabra frouxo chama pela mãe!

E os vaqueiros, entusiasmados, iniciam o laçamento dos animais condenados à castração, com os laços de couro cru, trançados em três pernas.O laçador posta-se com firmeza no centro do curral, e atira o laço com arremesso preciso, prendendo o garrote pelos chifres; com o corpo inclinado sustenta o laço e faz a rês parar com o brusco safanão.Os tangerinos, lépidos, ajudam a chegar o garrote ao manco da cerca rústica. Os mourõezeiros, rápidos, vãos amarrando os animais nos mourões de paus-d’arco, com as ligeiras. E, assim que um lote é completado, tem início à faca, à bruta, a castração! Para que os garrotes permanecessem quietos e não escoiceassem os castradores, levantavam-lhes os rabos com mão de força, e os dobravam rudemente para trás. Seguros desta forma sofriam os machos as dores da operação bruta, sem oporem reação. E no final serravam-se-lhes as pontas dos chifres. De vez em quando, se ouvia um urro profundo.

No final do beneficiamento, um garrote cerigado e valente desafiava os vaqueiros. Aí, o Tião-Eporudo, de físico avantajado, meio amulatado, vendo a filha do patrão na janela da casa, de olhos vigilantes no movimento do garrote, se animou com a oportunidade de fazer bonito, e, quem sabe, conquistar a donzela de olhos negros. E erguendo a voz, disse arrogante:

- Deixe esse malvado, que eu vou pegá-lo à unha!

E, ato contínuo, pulou para dentro do curral.Os companheiros o advertiram:

- Não brinque com o coisa-ruim, é perigoso!...

E o cabra, com destemor, enfrentou o animal enfurecido, agarrou-o pelos chifres, e foi esfregado na cerca de lascas do curral. Mas não o soltou, eram duas feras lutando, e, com agilidade fantástica, torceu-lhe o pescoço, e o garrote tombou para o chão, de cangalhas pro ar. Os colegas aplaudiram entusiasmados:

-Êta cabra bom!...

E o vaqueiro vitorioso determinou:

- Castrem o maldito, pra aprender a respeitar vaqueiro!...

Ao término da vaquejada, o major Capuba, satisfeito, com um sorriso maroto na carona de anta brava, deu à ordem para abrirem-se às porteiras de varões da curralama, e o gadão, apressado, derramou-se na imensidão da campina, à procura dos brotos tenros das canaranas e dos capins vermelhos.

A lua, em forma de foice, já começava a romper pras bandas do rio Javaé.

(Conto extraído de Negro d!Água-Mitos e Lendas do Tocantins}

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MOURA LIMA
Enviado por MOURA LIMA em 01/02/2007
Reeditado em 11/08/2008
Código do texto: T366335
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