O único passageiro
Salsicha largou do trabalho exatamente às seis da tarde, horário nada comum em dia normal, mas, por força maior, entretanto, obteve esse privilegio raro de acontecer. Seus pensamentos pairavam no ar revolto de nostalgia e ao mesmo tempo contemplado pela melancolia; mergulhado subitamente no pensar, quase perdeu a condução para casa, que por um fio não hesitou. Pagou e passou a roleta sem ao menos, cumprimentar o motorista e o cobrador, dando impressão de careta mal-educado. Mais na verdade algo o alienava; o perturbava; impedia-o de enxergar a realidade na sua pura essência da verdade; do concreto; do real. Ao passar a roleta percebeu estar sozinho, ou melhor, apenas ele de passageiro, que por breve momento pensou ser o réu mais temido da face da terra, por isso, da solitária. Sentou-se no último assento daquele singelo ônibus, que mal acelerava e fazia um alarido insuportável de motor enferrujado. A consciência dele pesou; seu corpúsculo derretia num suor ensebado; enxergar não mais conseguia, seus olhos temia a escuridão das trevas. Sentindo-se aprisionado num mundo desconhecido da solidão, e desprovido de qualquer realidade existencial, pôs-se a sonhar coisas inenarráveis a respeito do ser humano; estupendas histórias que ficaram pressas em outrora, por escritores desconhecidos e que talvez nem existiram; pelo simples fato de ser inverossímil para nós terráqueos, possa ser que essas histórias venham calhar numa pergunta: será que foram os extraterrestres os autores dessas histórias oculta sobre a vida do ser humano? Ninguém melhor para responder do que salsicha, que estava tendo miraculosamente alucinações surpreendentemente compulsivas.
— O homem é um robô, revestido de pele para nos enganar, e, fazer-nos pensar que somos humanos; o homem não tem coração, muito menos cérebro; o homem é uma máquina de matar! Alucinado salsicha escancarava nas palavras, atraindo para si, olhares de todos que se encontravam naquele humilde ônibus.
— Por favor! Alguém ligue para um médico, este homem está drogado.
— Meus Deus! Nunca presenciei algo parecido. Clamava um homem estupefato.
— O homem tem uma missão na terra: destruir a natureza e dominar o planeta; O homem tem um propósito indestrutível, ser inteligente o bastante; O homem apenas quer dominar o mundo para nele dar vidas a tecnologias altamente avançadas; O homem é filho da tecnologia! Prosseguia salsicha num mundo abstrato.
— Esse cara está mesmo drogado, fala coisa com coisa. Disse um camarada.
— Ele disse que os seres humanos são robôs disfarçados de humanos. Relembrava outro rapaz.
— Esse cara está pirado, é melhor interná-lo às pressas. Alegava um outro.
— O homem mente; O homem é ignorante; O homem é cruel com outro homem; O homem extrapola nos preconceitos raciais; O homem é o mais temido animal da face da terra!
Nestas últimas alucinações dois médicos de pronto chegaram no tal ônibus; averiguando o fato, perceberam que salsicha estava desvairado. Levantando a cabeça de salsicha, um dos médicos afagou-lhe os cabelos e lhe molhou o rosto com água gelada, fazendo-o voltar à realidade do nosso mundo. Ao abrir o olho, salsicha percebeu de imediato que não estava sozinho a deriva daquele ônibus; não estava sozinho como um réu solitário; tinha outros passageiros a compartilhar daquele calhambeque o alarido insuportável daquele motor estridente e enferrujado.
Salsicha levantou-se de seu assento e dirigiu-se à porta de saída, olhou para trás e, num largo sorriso benevolente bradou:
— O homem pode ser tudo isso, porém, o homem tem esperança de viver em paz, neste mundo fascinante do medo e da selvageria.
O homem pode mudar o mundo!