O choro de um homem
Era madrugada. As árvores ao vento sacudiam-se e rangiam-se. Nenhuma alma humana à vista, apenas um cão vira-lata sarnento, deitado defronte de uma loja de jóias que, àquela hora, cedia espaço ao mistério da vida. O silêncio. A obscuridade do lugar. O ar soprava gélido, formava redemoinhos, transportava energias negativas e pesadas. Cena de terror. Os olhos do cãozinho, inquietos, assustados, demonstravam o medo daquele momento. A repugnância daquele animalzinho para com a madrugada era incessante.
Naquele exato instante, marido e mulher discutia a berros e empurrões. Sobremaneira, ofensas eram trocadas. Objetos indefesos serviam de flechas. A pancadaria rumava fervorosa. Nenhuma das partes hesitava. A raiva. O ódio. Eram características presentes no olhar fulminante trocados entre os dois. Depois da turbulência acontecida naquela casa humilde, especificamente, no quarto pequenino do casal, a exaustão fê-los desistir da agressão. O homem, cujo nome chamava-se André, deixou-se recostar na parede. A mulher, cujo nome chamava-se Ana, caíra deitada na cama. Era o fim de mais uma briga familiar. A tradicional. Briga de marido e mulher. A vergonha daquela ocasião, tanto para ele quanto para ela, repercutia, pairava no ar. O pulsar do relógio-de-parede tornara-se estridente perante o silêncio do pudor. Interrompido, enfim, quando do primeiro suspiro. Logo em seguida, as primeiras palavras.
— Tem certeza que você quer isso?
— Nunca estive tão decidida. — proferiu a mulher.
— Então, dei-me vinte minutos para eu poder juntar minhas coisas.
— À vontade.
André cabisbaixo levantou-se de pronto. Suas mãos estavam levemente trêmulas, seu pescoço com arranhões. Sua camisa sem os botões no devido lugar. A tristeza era totalmente nítida naquele indivíduo apaixonado. Seu coração chorava a olhos visto, infelicidade no mais alto nível da desgraça. Anos e anos a fio juntos, diversos desentendimentos, e um basta de um tempo remoto. Já se tornara insuportável àquela estrita rotina. Os dois se encontravam cansados, desacreditados, desgastados, porém a decisão fora dela. Basta! Felizmente, apenas um chega! Poderia ter terminado em sangue, como muitos casos pelo mundo afora. Mas, ainda assim, ela também o amava.
Resolvido a questão da separação, André juntara todas as parafernálias dele e, subitamente, evadiu-se daquele lugar impróprio para mais lamentações. Já bastavam todas as sua súplicas. Não tinha mais nada para fazer naquela casa. Uma humilde casa construída pelos seus esforços diários. Anos após anos. E, tudo jogado ao vento por insatisfações familiares, por brigas generalizadas sem nenhum motivo convincente. Dessa vez, não teria nenhuma possibilidade de reconciliação, os dois sabiam bem disso.
— Seja feliz! — Salientou André.
— Serei! Agora saia, por favor.
Ele sem nenhuma palavra e completamente extasiado pela frieza da mulher, apenas fez um gesto de desaprovação. Bateu a porta com toda força. Seus pensamentos conservavam inadmissíveis tais atos de sua mulher, quer dizer, ex-mulher, àquela altura do campeonato os laços estavam desfeitos. Vagou pela noite afora sem destino, à procura de um recanto para recostar seu pobre corpo. Arranhado. Cortado. Fisicamente desprotegido. Sem anticorpos. Andou.
Após quarteirões a fio, André; exausto, avistou quase que, de relance, um cãozinho estatelado junto ao chão. O vento forte e frio que se dava no presente momento fazia com que o animal se recolhesse por completo, o medo visível do cão fez com que desapercebesse a presença do homem que se aproximava. Coincidência do destino. O animalzinho também fora renegado. André aproximou-se do melhor amigo do homem, sentou-se junto dele. A princípio, o cachorrinho afastou-se, só alguns minutos depois, completamente desprovido de carinho, resolveu pular no colo do homem. O medo que antes perturbava o pobre animal esvaiu-se de súbito com o calor humano, no aconchego de braços colhedor. Já estava amanhecendo. O vento gélido da madrugada assim como surgira desaparecera. A classe trabalhadora já estava de pé. Uma boa parte do mundo acabava de despertar. E, há mercê de tanto sofrimento, não pelo motivo de estar morando na rua, isto ainda que desumano é suportável, mas pela falta de consideração de sua amada, a esmeralda dos seus sonhos, aquela que sempre dedicou a própria vida, isto sim é inadmissível. Repugnante. Cruel. Desolado, lágrimas que nunca se sucedera naquele rosto maltratado, revelaram-se vulnerável a vida humana na terra.