INCRÍVEL, FANTÁSTICO, EXTRAORDINÁRIO
As aventuras de Zé Pintado e Pé de Valsa
por esse mundão de meu Deus
O jegue Norato apeou sem muita vontade. Com aquele olhar de quem não entende nada, tudo o que ele queria era seguir em frente, mesmo sem saber aonde o caminho levava. Aprendera isso com o seu dono – andar sempre e cagar de vez em quando.
Era a praça de um lugarejo, se é que dava para chamar assim. Norato sentiu um toque na rédea e, meio relutante, atendeu. Não podia negar o alívio quando o dono descia do seu lombo, porque os anos de estrada faziam o peso parecer maior a cada dia.
O homem revirou a algibeira e tirou um pedaço de rapadura, roendo a ponta, econômico. Norato gemeu para pedir um pedaço, mas sabia que era em vão – seu dono era um mão de vaca danado! Umas crianças passaram correndo, rindo, curiosas com o estranho que tinha chegado ao lugar. Ele retribuiu o sorriso, meio sem graça, escondendo os dois molares que já não tinha.
- O lugar é tão pequeno ... – pensou, em voz alta – Será que alguém sabe ler por aqui, Norato?
O jegue não respondeu ... Já havia se conformado em parar, e agora ia ser uma luta fazê-lo andar de novo. O homem pegou uns papéis na algibeira e puxou a velha viola, que estava pendurada às suas costas, como uma mochila.
- É, Norato, vamo pra luta! Esse povo vai conhecer os versos do Pé de Valsa, o maior cantador desse sertão!
Seguiu em direção à vendinha, que ficava em destaque no lugar. Norato segurou o riso – ou será que foram os gases?
............................
Os quilômetros entre Fortaleza e Campina Grande foram vencidos de forma sofrida. O ônibus seguia lento, e o calor fazia tudo parecer pior do que já era. A garrafinha de plástico com água foi economizada por horas a fio, mas acabara muito antes de chegar.
Zé Pintado comprara só a passagem de ida – o dinheiro não dava para outra coisa – mas tinha certeza que ia vencer na vida, como cantador, na capital cultural da Paraíba. Seu tio, João Ruivo, fez história por ali, em desafios com os mestres ... pelo menos era assim que ele se gabava, mas verdade de cantador é uma coisa muito relativa.
Foi dele que Zé Pintado aprendeu o ofício, mas outras coisas o garoto aprendeu sozinho – o toque da rabeca e a arte da xilogravura, com a qual ganhava a vida nos tempos difíceis.
Quando desceu do ônibus, parecia um turista – roupas da cidade, cabelo cor de fogo, o rosto cheio de sardas. Na infância, ganhou o apelido que virou nome de cantador e tinha lá algum sangre de gringo misturado ao nordestino. No fundo, tudo mundo tinha, mas nele os sinais eram mais evidentes.
Tentar a sorte como repentista era um sonho antigo, mas o moleque de Fortaleza não fazia muita idéia do que era a realidade. Logo que chegou à grande e animada feira da cidade, sempre em ritmo de festa junina, mesmo em abril, esbarrou com a rabeca em um baixinho, com cara de invocado, que não gostou nem um pouco:
- Me desculpe, moço!
- Comigo tem desculpa não, cabra! Se você soubesse tocar esse negócio aí, não ficava esbarrando com ele nos outros. Segue seu rumo pra eu não perder a paciência!
Ah! A hospitalidade era como os bons versos – aparecem quando menos se espera, somem quando você mais precisa deles. Pintado baixou a cabeça e, enquanto se afastava, ainda pode ouvir o comentário.
- Todo dia chega mais um moleque pensando que é cantador por aqui. Aí mexe com a mulher dos outros e vai embora correndo, com o rabo entre as pernas. Detesto essa gente!
O sonho ia ser difícil ... “Se não for difícil, não vai ter graça!”, pensou o cantador, pronto pro primeiro desafio.
(1ª parte da saga dos cantadores Zé Pintado e Pé de Valsa, personagens criados por William Mendonça, publicada originalmente no blog do autor em 14/06/2005. Deriva deste conto uma peça de teatro, ainda inédita. Direitos reservados.)
As aventuras de Zé Pintado e Pé de Valsa
por esse mundão de meu Deus
O jegue Norato apeou sem muita vontade. Com aquele olhar de quem não entende nada, tudo o que ele queria era seguir em frente, mesmo sem saber aonde o caminho levava. Aprendera isso com o seu dono – andar sempre e cagar de vez em quando.
Era a praça de um lugarejo, se é que dava para chamar assim. Norato sentiu um toque na rédea e, meio relutante, atendeu. Não podia negar o alívio quando o dono descia do seu lombo, porque os anos de estrada faziam o peso parecer maior a cada dia.
O homem revirou a algibeira e tirou um pedaço de rapadura, roendo a ponta, econômico. Norato gemeu para pedir um pedaço, mas sabia que era em vão – seu dono era um mão de vaca danado! Umas crianças passaram correndo, rindo, curiosas com o estranho que tinha chegado ao lugar. Ele retribuiu o sorriso, meio sem graça, escondendo os dois molares que já não tinha.
- O lugar é tão pequeno ... – pensou, em voz alta – Será que alguém sabe ler por aqui, Norato?
O jegue não respondeu ... Já havia se conformado em parar, e agora ia ser uma luta fazê-lo andar de novo. O homem pegou uns papéis na algibeira e puxou a velha viola, que estava pendurada às suas costas, como uma mochila.
- É, Norato, vamo pra luta! Esse povo vai conhecer os versos do Pé de Valsa, o maior cantador desse sertão!
Seguiu em direção à vendinha, que ficava em destaque no lugar. Norato segurou o riso – ou será que foram os gases?
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Os quilômetros entre Fortaleza e Campina Grande foram vencidos de forma sofrida. O ônibus seguia lento, e o calor fazia tudo parecer pior do que já era. A garrafinha de plástico com água foi economizada por horas a fio, mas acabara muito antes de chegar.
Zé Pintado comprara só a passagem de ida – o dinheiro não dava para outra coisa – mas tinha certeza que ia vencer na vida, como cantador, na capital cultural da Paraíba. Seu tio, João Ruivo, fez história por ali, em desafios com os mestres ... pelo menos era assim que ele se gabava, mas verdade de cantador é uma coisa muito relativa.
Foi dele que Zé Pintado aprendeu o ofício, mas outras coisas o garoto aprendeu sozinho – o toque da rabeca e a arte da xilogravura, com a qual ganhava a vida nos tempos difíceis.
Quando desceu do ônibus, parecia um turista – roupas da cidade, cabelo cor de fogo, o rosto cheio de sardas. Na infância, ganhou o apelido que virou nome de cantador e tinha lá algum sangre de gringo misturado ao nordestino. No fundo, tudo mundo tinha, mas nele os sinais eram mais evidentes.
Tentar a sorte como repentista era um sonho antigo, mas o moleque de Fortaleza não fazia muita idéia do que era a realidade. Logo que chegou à grande e animada feira da cidade, sempre em ritmo de festa junina, mesmo em abril, esbarrou com a rabeca em um baixinho, com cara de invocado, que não gostou nem um pouco:
- Me desculpe, moço!
- Comigo tem desculpa não, cabra! Se você soubesse tocar esse negócio aí, não ficava esbarrando com ele nos outros. Segue seu rumo pra eu não perder a paciência!
Ah! A hospitalidade era como os bons versos – aparecem quando menos se espera, somem quando você mais precisa deles. Pintado baixou a cabeça e, enquanto se afastava, ainda pode ouvir o comentário.
- Todo dia chega mais um moleque pensando que é cantador por aqui. Aí mexe com a mulher dos outros e vai embora correndo, com o rabo entre as pernas. Detesto essa gente!
O sonho ia ser difícil ... “Se não for difícil, não vai ter graça!”, pensou o cantador, pronto pro primeiro desafio.
(1ª parte da saga dos cantadores Zé Pintado e Pé de Valsa, personagens criados por William Mendonça, publicada originalmente no blog do autor em 14/06/2005. Deriva deste conto uma peça de teatro, ainda inédita. Direitos reservados.)