PEDRO, O PESCADOR
 

 


Um pescador chegando de volta ao ancoradouro, à beira do rio onde habitualmente trabalhava, limpou e lavou o seu barco e arrumou cuidadosamente todo o material de trabalho tais como: redes, varas, anzóis, etc. Guardou cada coisa no seu devido lugar, deixando tudo pronto para o dia seguinte. Em seguida separou e contou os peixes que conseguiu pescar naquele dia.

Satisfeito com o resultado e até prevendo o bom lucro que teria vendendo esses pescados, colocou-os num grande balaio de taquara que ele mesmo confeccionou, levou este ao ombro desnudo e partiu em direção ao centro da cidade onde morava, caminhando uns cinco quilômetros de estrada de terra, sob um sol escaldante de mais de trinta e cinco graus centígrados para na feira local concluir a sua missão diária.
Lá chegando, como de costume foi primeiro até a venda e bar do seu Mané, onde os demais pescadores da região se reuniam para tomar seus aperitivos e tagarelar sobre as novidades, fofocas e as mentiras de pescador mais reassentes. Olha que sempre têm muitas.
Colocou o balaio no chão e sentou-se em um banquinho improvisado feito de pedaço de tronco de árvore, ficando estrategicamente olhando de frente para a rua. A feira da cidade onde pretendia ir vender seus peixes estava ali bem próxima, a uns trezentos metros no máximo. 
Após a troca de cumprimentos com os amigos foi logo pedindo ao seu Mané a sua cerveja bem gelada de sempre. Claro, acompanhada daquela tradicional porção de torresminho. Conversa vai, conversa vem, já descansado e alimentado, ele levanta-se e procura o vendeiro para pagar a conta. Pretendia vender os seus peixes e ir embora mais cedo para casa. Afinal naquele dia ia conseguir levar uma lembrança para a sua mulher, o que há muito não fazia.
Tomou um enorme susto quando o dono da venda lhe disse:
- A sua conta já está paga seu Pedro. 
 Indignado perguntou quem seria o benfeitor que pagou antecipado a sua conta. A resposta veio em forma de outra pergunta:
- Seu Pedro, o senhor está vendo aquele carro vermelho do outro lado da rua?
 - Sim, é claro. Eu não sou cego. O que é que tem de ver aquele carro comigo e com a minha dívida?                   
- Pois é, disse o seu Mané, com um sorriso de dentes amarelos:
 - O dono daquele carro é o doutor Cristóvão. Advogado e jurista famoso, que agora também é candidato a deputado federal. Foi ele quem veio aqui e pagou a conta desse povo todo, inclusive a sua.  
Ah! Ele disse também que quer comprar todos os seus peixes. Que paga melhor que os feirantes. Paga à vista e em dinheiro limpinho na mão. Esta aqui o cartão com o endereço aonde o senhor vai encontrá-lo. Lá, o senhor vai só receber e depois tem que levar o balaio com os peixes no endereço da sua casa que ele dirá na hora. 
Foi assim que falou o vendeiro de uma só vez.
Preocupado, não entendendo a atitude daquele cidadão o pescador olhou mais uma vez para o carro vermelho lá na rua.  Abaixou a cabeça, olhou pra um lado e para o outro, fixou a vista para o carro novamente, pensou, escarafunchou a mente e de repente, num lampejo de memória olhou mais uma vez aquele veículo estacionado e agora, como num passe de mágica, melhor olhando o identificou. É, afirmou mentalmente.
Ali estava o mesmo carro que no mês passado vira saindo do portão da sua casa, no dia em que voltou mais cedo da pescaria. Aliás, no dia em que não houve pescaria por causa do mal tempo e da enchente do rio.
Sem falar mais nada para o dono da venda apenas agradeceu, colocou o balaio nas costas e foi direto para a feira. Como os seus peixes estavam graúdos e bonitos, ainda bem frescos, não teve nenhuma dificuldade em vender tudo rapidamente.
Terminado a venda, agora já vestido com uma camiseta, foi direto para casa. Não passou no bazar comprar a lembrança para a sua mulher como havia pensado antes. Estava com a cabeça fervendo com pensamentos assustadores. Perguntas e mais perguntas lhe vinham à mente em segundos.
Como podia ser isso? Porque ela fez isso? O que fez para merecer isso. Será que ela o traiu? Há quanto tempo será que isso acontece? Como foi que ela conheceu esse cara? De onde será? Exclamações: Ah! Se eu pego esses dois juntos. Oh! Meu Deus, não me deixa fazer uma burrada maior da que eu já fiz casando com essa safada. Ah, Mas eu pego esse doutorzinho. Ele que me espere.
Com todas essas indagações e pensamentos rancorosos chegou a casa. Bruscamente abriu a porta e entrou de cabeça baixa, chamou pela mulher, dona Rita, mas sem resposta, pois ela não estava. Ficou mais furioso ainda.
A casa onde morava era assobradada. Assim subiu até o seu quarto no pavimento superior, foi ao chuveiro e tomou um banho. Trocou-se, agora adequadamente, e preparou-se para voltar à cidade. Só pensava numa coisa: Em vingança.
Pedro era um excelente pescador. Trabalhava na pesca por que gostava. Havia optado por essa profissão. Era formado em biologia, com vários cursos de pós-graduação e tinha dezenas de outros cursos de reciclagem, inclusive exerceu a profissão por muitos anos. Porém sempre sonhou em comprar um barco e um rancho à beira do rio, para viver só da pesca. Na primeira oportunidade que lhe surgiu executou o plano de criança. Efetivou a compra do terreno à beira do rio Paraná, comprou o barco e realizou integralmente seu projeto. 
Já estavam morando e trabalhando naquela cidade há uns quinze anos. Eram felizes. Ele e dona Rita se amavam muito. Nunca discutiam ou brigavam. Seu único filho, o Carlinhos optou por continuar seus estudos e trabalhar em São Paulo, na Capital. 
Quando se casaram, isto é, quando constituíram uma sociedade conjugal de união estável, há mais de trinta anos  ele era divorciado, vindo de um casamento mal sucedido, enquanto que dona Rita era solteira, isto é, casada de fato, mas não de direito. Aliás, vale ressaltar que nos dias de hoje essas uniões são muito comuns e naturais, enquanto que na época deles à qual nos referidos não. 
Dona Rita era uma mulher esguia, muito bonita, de cabelos e olhos castanhos. Na região os moradores a consideravam uma santa. Todos a elogiavam por sua inteligência, meiguice e benevolência. Também era formada em psicologia, mas não exercia a profissão em emprego fixo remunerado. 
No entanto não parava um só minuto. Trabalhava em muitos projetos sócios incansavelmente. Era por essas pessoas caridosas que se doava, dando de si o que tinha de melhor. 

Atendia na área da psicologia, orientando gratuitamente todas as pessoas necessitadas que a procurasse. Não media sacrifícios. Onde fosse necessário que a chamassem, lá estava dona Rita solícita e prestativa, com um sorriso cativante. 
Dona Matilde, esposa do prefeito e claro, primeira dama da cidade às vezes até abusava da dona Rita, convocando-a para os mais diversos eventos, inclusive para lecionar na falta de professores na rede pública municipal. Nas casas de saúde ela era sempre esperada aos domingos com seus doces e salgados. Os fazia com muito carinho e ia pessoalmente levá-los  para distribuir àqueles irmãos que sabia serem mais carentes. 
Em toda parte da cidade, sobre tudo na periferia, onde moravam as pessoas mais pobres, o povo lhe tinha grande admiração e apreço. Sentimento esse que era também extensivo ao casal. O povo da região os achavam bonitos. Sabiam que ambos se amavam e se respeitavam muito. 
Assim, relembrando as suas vidas desde o começo até aquele momento, considerando os prós e contras, Pedro iniciou a caminhada de volta à cidade. Iria primeiro procurar dona Rita em algum asilo ou escola. Depois, com ela iria, nem que fosse na marra, ao escritório do Dr. Cristóvão tirar tudo a limpo.
Remoendo as idéias falava consigo: É hoje que eu acabo com tudo. De hoje não passa. Esse doutorzinho vai ver o que é bom pra tosse. 
Chegou num asilo de senhoras onde a sua esposa frequentava diariamente e perguntou para a recepcionista: 

- Minha mulher está trabalhando aí hoje?
- Não. Respondeu a moça com um sorriso nos lábios. Mas sei aonde o senhor vai encontrá-la agora. 
- O senhor ainda não sabe da novidade, seu Pedro?
- Não. Disse o pescador  com voz mais alta, enfurecido, bem fora do seu normal. 
- A doutora Rita está no escritório do doutor Cristóvão, advogado novo que está na cidade. Ele também é candidato a deputado federal. Dona Rita foi convidada para ajudá-lo na campanha e no escritório.
Foi o que respondeu a moça olhando para o seu interlocutor.

Pedro apesar da rudez da profissão que exercia naquela cidade era um homem culto e educado, por isso passado o momento de nervosismo, vendo que a moça foi gentil lhe informando corretamente o que queria saber, mas que na realidade das suas conjeturas já sabia, despediu-se com gentileza,  agradeceu a informação e saiu dirigindo-se direto para o endereço indicado no cartão em seu bolso. 
Na recepção, para a sua surpresa, todos os funcionários o receberam com uma deferência bem especial e acolhedora. Quase não acreditava no que via. Perguntou pelo doutor. Cristóvão à recepcionista e esta amável e sorridente respondeu: 
- Seu Pedro, eu já avisei a secretária do doutor que o senhor chegou. Ele está tão eufórico com a sua visita, que teve de se recompor, pois derramou café na roupa. Se a doutora Rita não estivesse ao seu lado ele teria tido um enfarto ou então desmaiado. Todos nós ficamos muito preocupados. 
Nossa. Que diabos são isso? Porque um doutorzinho que veio só Deus sabe de onde, iria ficar eufórico e feliz por causa de um modesto pescador? E o que a, sua mulher estaria fazendo lá ao lado desse doutor que todos sabiam, só eu que não? Foi o que Pedro conseguiu resmungar para si.
Passados alguns minutos, não mais que cinco, a secretária anunciou:
- Diga ao Doutor Pedro para entrar.
Quando ouviu essa palavra que há muitos anos não ouvia, "Dr. Pedro" ele foi quem quase caiu desmaiado ali na sala de recepção. Lembrou imediatamente: Só existia uma pessoa que o tratava de Dr. Pedro. Era o seu professor da faculdade e também no curso de pós-graduação em biologia. Só o doutor. Francisco Chagas, diretor de um grande hospital e de uma escola em São Paulo o tratava assim. 
Mais indagações lhe vieram à mente: O que o doutor Francisco estaria fazendo ali? Hum!!!!!! O doutor Francisco odiava política que nem ele.... Pensou. Recuperou-se, ergueu o corpo e entrou na sala.
Mais outra enorme surpresa. Na mesa central estava aquele que certamente era o Dr. Cristóvão. Ao lado, noutra mesa estava uma moça loira de olhos azuis, lindíssima, por certo a secretária e, numa poltrona bem instalada, com mesa de centro repleta de guloseimas, chá, café, refrigerantes, etc. estavam sentados o Dr. Francisco, um homem de uns oitenta anos, de cabelos grisalhos, mas com o mesmo semblante de cinquenta anos atrás. Ao seu lado, e afagando levemente os seus cabelos estava a Rita, sua mulher querida. Sem que o pescador tivesse tempo de falar mais alguma coisa, o Dr. Cristóvão foi logo falando em voz alta pra todos ouvirem:
- Vem cá logo me dá esse abraço que há mais de trinta anos estou esperando, meu cunhado e meu irmão. Já teve época na minha vida que cheguei a ter ciúmes de você, seu danadão. Só quando descobri que a Ritinha é minha irmã foi que passou o ciúme, pois vocês já estavam juntos e o Carlinhos até já tinha nascido.
- Quanta alegria eu sinto em ter na minha família um homem tão digno, honrado e respeitado como você. Seja bem vindo meu irmão. Olha ali, apontando para o Dr. Francisco. Meu pai e minha irmã estão chorando. Hei vocês, parem de chorar, se não eu vou chorar também. Dizendo isto se dirigiu até onde o pescador estava ainda paralisados e atônitos, o doutor Cristóvão abraçou-o, dando um beijo na testa, como prova de respeito e carinho.
O Dr. Francisco levantou-se e o abraçou também com lágrimas nos olhos e falando:
- Boa tarde meu filho. Quanta honra e alegria saber que o meu melhor aluno em todos os tempos é o marido exemplar e querido da minha linda filha Rita. Você não sabe o quando é importante esse nosso encontro depois de quarenta anos passados.
- Tenho que agradecer muito a Deus por isso. Enquanto que a Ritinha ou doutora Rita, chegou bem perto do marido, abraçou-o, beijou-lhe os lábios e falou calmamente
- Hoje é um dos dias mais feliz da minha vida. Cheguei a pensar que esse dia não ia chegar. Obrigado meu amor por ser tão generoso e bom. Se não fosse você o que é, jamais reencontraria o meu verdadeiro pai e o meu irmão. Perdoa-me por ter demorado tanto pra te contar. Eu precisava ter certeza e preparar uma boa surpresa pra você.
- O Cristovam quer fazer uma grande festa, com Churrasco de peixes, frangos e tudo o mais a que tenhamos direito, por isso foi lá na venda do seu Mané pra comprar os peixes de você. Só que ele não queria se identificar antes que eu tivesse falado. Já sabemos que vendestes todo o peixe, mas não tem importância. A gente espera você pescar novamente, ou se você autorizar nós compramos dos outros pescadores.
A REFLEXÃO
 
 Perplexo, muito assustado com os acontecimentos daquelas duas últimas horas, surpresas e reencontros, mas ao mesmo tempo feliz, com a convicção de que sempre agiu com sobriedade e respeito para com todos, sentou-se na poltrona e pôs-se a chorar. Mas chorar copiosamente. Voltou à baila em sua cabeça todas aquelas indagações e exclamações, agora acrescida da sua própria indignação: Porque fora tão maledicente encasquetando tanta maldade na mente, crucificando injustamente no pensamento uma mulher como a sua esposa?

Mais uma vez exclamou e ao mesmo tempo mentalmente afirmou. Deus meu Pai, obrigado. Perdoa-me pela minha fraqueza, palas minhas faltas e sobre tudo por esse mal que cheguei a pensar em fazer. Obrigado por essa luz que me iluminou. Obrigado pela companheira que colocastes no meu caminho. Eu sou o pescador mais feliz da terra.
Daquele dia em diante, o pescador passou a ouvir mais a sua esposa querida. Começou acompanhá-la em suas peregrinações para atender os seus assistidos. Não podemos deixar de enfatizar que o Dr. Cristóvão foi eleito com uma votação esmagadora, tal a popularidade da rua irmã Rita.
MORAL DA HISTÓRIA:
 
 Como se diz popularmente "Muitas vezes a gente se afoga em copo d'agua". Conjecturamos as mais diversas maldades em nossas mentes. Assim de forma precipitada, injusta e indevidamente acabamos julgando e até condenando nossos irmãos e entes queridos. Qual de nós pobres mortais não agiu com açodamento em alguns momentos das nossas vidas?

 
Quantas não foram as consequências drásticas que criamos para nós mesmos por simples precipitações? Lembrem-se disso meus caros amigos e leitores: Todo açodamento acaba nos trazendo inúmeros transtornos, de difícil reparação. Principalmente quando agimos com o coração e não com a razão. Tenham certeza disto.

O conto acima nos mostra muito bem o que é o pré-julgamento. Infelizmente conheço de casos idênticos em que por conta de atos impensados e precipitados pessoas cometeram desatinos. Outras ceifaram vidas inocentes sem motivo algum. Apenas pela vontade de ser mais realista do que o rei como se diz no adágio popular e pelos maus pensamentos.
 
                                                                        FIM








Nota do autor:


01) O conto que acabam de ler foi um trecho adaptado tirado do livro da minha autoria que tem o mesmo nome, já em fase de edição e publicação. Tudo foi escrito em 2010. Pretendo lançá-lo no mercado brevemente, se Deus quiser
02) Corrigindo. Eu disse por engano ou descuido que tudo foi escrito em 2010. O meu livro PEDRO, O PESCADOR eu comecei a escrevê-lo em 20004. Terminei em 2007 e só vim publicar em 2010 este trecho.
03) A foto ilustrativa inseri hoje com a devida autorização do seu autor, meu amigo caiçara e conterrâneo José Boaventura.