TONHO DOIDO
Mariana tinha oito anos quando foi recrutada para trabalhar com a comadre de sua mãe, dona Maria, que tinha uma pequena fábrica de arranjos para noivas. O trabalho era artesanal, nada que fosse proibido para uma criança. Difícil mesmo era acostumar a ficar enjaulada, quando se sentia livre como uma andorinha. O trabalho era repetitivo: enfiar miçangas no fio de náilon, encapar arame com papel crepom e prensar as flores. Depois tinha a equipe que montava as flores, e outra que montava as grinaldas.
Alice era uma cidadã mãe de 10 filhos, tendo um a cada ano e meio. Essa era uma base real das famílias que não tinham recursos. Ela e seu esposo Cícero vieram da Paraíba recém casados, quando Alice tinha acabado de ganhar sua filha mais velha. Fizeram a viagem em cima de uma carga de coco. Pensa no sofrimento! A menina tinha uma doença conhecida como doença de macaco. A criança só vomitava e ia perdendo as forças, até parecer uma caveira. Alice, desesperada, fez promessa para Nossa Senhora, e suas preces foram atendidas, pois a criança se salvou. As outras crianças nasceram em Planaltina, uma cidadezinha do interior do Paraná, onde ela conheceu dona Maria que logo se tornou sua comadre. Sabendo das dificuldades de Alice, dona Maria se compadeceu e assim que as filhas completavam 8 anos, ela as pegava para trabalhar na fabriqueta por meio período, e no outro período as crianças estudavam.
Dona Maria fazia questão de que as filhas de sua comadre estudassem, e de queda ainda ajudava na educação delas. Ensinava postura ao se sentarem, a comerem de boca fechada, a falarem corretamente, enfim, lhes ensinava boas maneiras, e as crianças se tornaram moças educadas.
Foi nessa época que Mariana ficou sabendo da história do homem que quando era criança tinha acordado depois de ser dado como morto. Ele tinha o apelido de Tonho Doido, e dona Maria o chamava de Toninho. Ele ia lá todos os dias tomar café e comer uma bela fatia de pão com chimia (doce mole para passar no pão), mas ela só lhe dava depois que ele varresse o terreiro ou arrancasse uns matinhos do seu quintal. Acho que pensava que ele se sentiria menos doido e mais útil. E mesmo quando a empregada da casa que era minha irmã já o tinha feito, dava a vassoura para ele do mesmo jeito. A ordem era fazer com que ele pagasse com um serviçinho qualquer mas de não lhe dar nada antes disso.
As funcionárias mais velhas qundo o viam chegar, chamavam-no na janela para ele contar sua história, e elas faziam rodízio, até que chegou a minha vez. E eu um pouco mais esperta do que há um ano atrás, lhe perguntei faceira:
-- Então,Toninho, conta como é que foi que você ressuscitou?
-- O quê? – perguntou ele.
– Como foi que você reagiu depois que acordou no caixão?
-- Não me lembro de nada não, eu era muito pequeno, estava dormindo dentro de um caixão, mas pensava que era uma cama, e quando eu senti aquele cheirinho gostoso de café, eu pedi: “Mãe, eu quero café!” mas quando abri os olhos vi aquela gente em minha volta e o povo começou a gritar e a correr pela porta afora. Foi aquele alvoroço, e quando eu sentei, o tropé foi ainda maior, e não ficou ninguém a minha volta, Fiquei atordoado quando percebi que estava num caixão e que tinha morrido de verdade. Desde esse dia algumas pessoas fogem de mim com medo e outros zombam gritando: ! Ô, Tonho Doido, você ta morto!” Só sei disso: que levantei do caixão, a minha família ficou do meu lado, e o resto sumiu.
E como éramos em mais de 15 meninas a trabalhar na fabriqueta, a história era contada sempre. O dia que ele não contava, era porque estava muito bravo e então resmungava e mandava a gente ir para aquele lugar...
A lenda do menino que havia ressuscitado correu o mundo e todos conheciam o Tonho Doido, já haviam se acostumado com ele, e era considerado muitas vezes um fantasma reencarnado. Os anos foram passando, ficou sempre muito franzino, magro, e da altura de um adolescente de uns 12 anos. Embora tivesse idade adulta, não amadureceu, continuou tendo comportamentos extravagantes que todos viam com naturalidade. Afinal, ele já fazia parte da história daquela pequena cidade.
Nos desfiles de 7 de setembro, ele se colocava na frente da fanfarra comandando o pelotão da frente, e aparecia em tudo que é foto de comemorações públicas. Nos últimos desfiles, como já era membro voluntário, deram-lhe um chapéu desses parecidos com os da guarda real e ele ficava lá
agora com uma pequena vara na mão, parecendo um maestro. Todo mundo ria e ele com aquela cara de bravo, na frente, gesticulando, sacudindo os braços o quanto podia. Afinal ele era doido... e doido pode tudo.
Quando cismava com alguma coisa, não desistia enquanto não fosse atendido. Conseguiu um quepe, um óculos escuro, um apito, e imaginando ser um guarda de trânsito, punha-se em alguma esquina apitando e gesticulando para orientar o que não havia nada a ser orientado aos motoristas.
Sem noção real da vida, falava tudo o que queria, às vezes xingava, corria atrás das pessoas que lhe enchiam o saco, mas nunca deixava de ir na casa de dona Maria tomar seu cafezinho. Isso era sagrado, mas quando ele faltava, dona Maria logo tratava de saber o que tinha acontecido, e lá ia uma das meninas até a casa de dona Lola pra saber o que estava se passando com seu filho Toninho.
O mesmo acontecia quando ele se demorava na rua. A pobre Lola, uma velhinha alcançando seus 80 anos, aparecia na casa de dona Maria para saber se ele tinha passado para tomar o café. E se o encontrasse, dona Lola com uma varinha de nada, forçava-o a ir embora e ele, com medo da varinha, ia na frente ralhando, no seu linguajar pouco entendido.
Dona Lola parecia um anjo em pessoa, falava baixinho e carregava sua cruz, que era seu filho, com todo amor do mundo. Os dois viviam em uma casinha que foi construída com a ajuda da comunidade que ela ajudava através das suas rezas feitas ao santinho de sua devoção, em benefício das pessoas que a procuravam. Ela também benzia as pessoas. Muitas mães levavam as crianças, e até os adultos iam lá também para serem benzidos.
Dona Lola era devota do Menino Jesus da Tábua, segundo conta a história: “Antonio Marcelino nasceu no início do século XX, filho de pais humildes, trabalhadores e moradores na zona rural do município de Maracaí. Foi assim que durante muito tempo viveram ele, seus pais e demais irmãos: Antonio Marcelino, conhecido em vida pelas pessoas como – O menino da Tábua – devido a sua deficiência física, pois viveu toda a sua vida em cima de uma tábua, alimentando-se apenas de leite e água. Já em vida realizava vários milagres e, com o decorrer do tempo, seus familiares notavam que sua cabeça desenvolvia normalmente, enquanto o seu corpo mantinha o formato físico de uma criança. Marcelino era nascido de sete meses de gestação e, segundo testemunhos, diziam jamais ter visto a luz do sol, pois não saía de seu quarto e não permitia que lhe cobrissem ou forrassem a tábua. Sua mãe insistia, principalmente em noites frias, em vesti-lo, chegando a costurar sua veste no corpo. inexplicavelmente ele tirava a roupa sem que ninguém visse. Isso é uma prova de sua força espiritual mesmo em vida. Seus pais eram Sebastião Rodrigues de Oliveira e Geraldina Maria de Jesus. De acordo como os documentos, Antonio Marcelino (O menino da Tábua) faleceu com precisamente 45 anos de idade, às 18 horas do dia 31/08/1945. Foi sepultado no cemitério de Maracaí, juntamente com sua tábua. Seu atestado de óbito nº3073 encontra-se no Cartório de Registro Civil de Maracaí. Com o decorrer do tempo, o fato passou a repercutir de maneira crescente e a atenção de muitos se voltaram para o acontecimento. Há vários anos, começou de maneira assustadora, todo fim de semana, chegar a Maracaí romeiros do Brasil inteiro, atraídos pelo que estava acontecendo.
Maracaí, de uma cidade pacata do interior do Estado de São Paulo, passava a ser um consolo espiritual. Hoje, lá se encontra uma capela construída juntamente com a sala dos milagres, onde estão expostos, objetos, fotos e presentes que a ele são dedicados como forma de agradecimento. Referindo-se novamente à capela, o curioso é que ao redor do túmulo, o espaço reservado já é uma indicação divina, pois a mesma foi construída sem a necessidade de demolir sepulturas que estivessem ao seu redor. Vamos relatar um dos inúmeros milagres já comprovados com a graça recebida. Realmente são fatos curiosos, e o número de romeiros que aumentaram, principalmente depois que uma enfermeira da cidade de Assis – SP, foi curada de câncer, após ter feito um pedido diante do túmulo”. (FONTE DO LIVRO DA VERDADEIRA HISTÓRIA DE ANTONIO MARCELINO, O MENINO DA TÁBUA, AUTOR CLAUDIO JUNIOR RIBEIRO.)
Dona Lola construiu em sua humilde casinha um santuário ao Menino da Tábua. Lá ela fazia suas orações, acendia as velas que os devotos levavam, e no Dia de Finados aparecia na casa de dona Maria para pegar uma coroa de flores de parafina que dona Maria comercializava. Todo ano, no Dia de Finados era aquela trabalheira, mas a de dona Lola estava reservada e era de graça. Dona Maria só pedia que continuasse a fazer suas orações por ela.
Quanto a esse nosso primeiro emprego, os anos se passaram e os serviços na fabriqueta de flores no fundo da casa de dona Maria foi diminuindo, a entrada das flores importadas no mercado brasileiro tomou uma proporção gigantesca, e foram sufocando os artesãos que mal conseguiam se manter. Resultado: muitas firmas acabaram declarando falência. Nessa época já haviam se passado mais de 15 anos, e resolvemos que desvíamos deixar Planaltina. Primeiro fomos para São Paulo. Eu e Helly, minha irmã um ano mais nova, ficamos seis meses lá. Depois voltamos e, em seguida, fomos para Curitiba. Eu fiquei dois anos e meio, mas minhas irmãs até hoje vivem lá. A doença de minha mãe fez com que eu voltasse no ano de 1991. Aqui, em sociedade com uma amiga, abrimos uma lojinha chamada Macri7 Decoração, num espaço alugado, mas essa sociedade não demorou muito tempo porque não obtínhamos o lucro que esperávamos, devido à nossa falta de capital de giro. E assim, eu acabei desistindo do ramo comercial em minha cidade natal.
Continuei a trabalhar fazendo flores em casa, e dava para sobreviver. E eu também doava para dona Lola, no Dia de Finados, uma coroa. Anos depois ela veio a falecer, e o seu filho Toninho foi morar numa fazenda onde a sua irmã trabalhava, mas ele era tão habituado com a sua mãe e com a vida em Planaltina, que não se acostumou. Foi ficando cada vez mais triste (na época ninguém ouvia falar em depressão), foi adoentando, definhando dia a dia e, finalmente, o morto vivo havia morrido no seu isolamento. Cheguei a ir ao seu velório, mas desta vez ele realmente havia deixado este mundo.
E o comentário foi geral: “O Tonho Doido morreu...”
MARGARIDA BRITO