O ENTRUDO
O ENTRUDO
*MOURA LIMA
o padre Saturnino seguia com passos firmes pela calçada, tendo numa das mãos o breviário e, na outra, uma jarra esmaltada cheia d’água, camuflada na batinona preta. O capitão Vergueiro de Castro vinha em sentido contrário, de fraque, cartola, todo lorde, como bom arraiano de descendência portuguesa, apoiado na sua bengala de cabo de prata. Ao cruzar com o padre, saudou-o amistosamente:
— Bom dia, seu Vigário!
O padre respondeu com um sorriso amável, mas irônico, de alguém que escondia alguma coisa, não confessada.
— Bom dia, capitão Vergueiro!
E seguia todo circunspecto, com ares de meditação. Mas foi só o capitão virar as costas, que o padre voltou em riba do rastro, numas passadas cômicas de mambirão. E despejou a jarra de água na cabeça do capitão proferindo o grito de guerra do entrudo:
— Maria, Maria, como dói água fria!
O capitão levou um susto de bater a pacuera e esbravejou:
— Você me paga, seu urubu, filho do Romãonzinho!
E sacudindo a cartola molhada, reiterou:
— Como não me lembrei do entrudo?...
E o padre prosseguiu, na gargalhada, rua abaixo.
O juiz da comarca, lá do janelão que dava pra praça, caiu na gaitada. Estava assim declarada a festa do entrudo, com sua alegria e os exageros. A guerra de água estava começando, entre os moradores da vila. Era uns saindo molhados das casas, outros correndo atrás dos amigos para descontar o banho. Vozes entuando o grito de guerra:
— Maria, Maria, como dói água fria! E lá vai água. Era mais um cristengo sendo pego de surpresa.
O pongó da vila, Butifarra, nos seus passos tardos, com seus botões largos e rotos, vinha da biquinha com um pote de água na cabeça, e foi surpreendido por João Matraca, que lhe virou na cacunda a vasilha. A sua reação foi imediata. E os palavrões saíam escandalosamente. Aí que a molecada delírava. O ferreiro Zarcão Cabano, mulato robusto, naqueles dias do entrudo, não dava oportunidade de brincadeira. Com a cara amarrada, seguia pela rua. O coronel Verico, da porta de sua casa, deu um patacão pro negro Minervino molhá-lo. E o negro se animou todo e lá se foi de balde na mão. Quando chegou perto do cascagrossa e levantou o braço, o ferreiro escanchou-lhe a garruchona no peito e disse:
— Joga, seu poaio!
O negro caiu as carnes. E o ferreiro tomou-lhe o balde e o encharcou todo. As beatas do casarão de dona Ritinha se sacudiram na gargalhada.
O coronel Verico, ardoroso defensor das tradições do entrudo, distribuiu outros patacões entre meia dúzia de seus escravos, que neste dia liberava para a brincadeira.
E os negros caíram em cima do ferreiro e lhe deram um banho sacudido. No final, o valentão entrou também na brincadeira.
O Barão-das-Onças era um doido manso. E naquela manhã de entrudo, resolveu aparecer montado numa égua melada, piolhenta e troncha. E estava toda enfeitada de penachos coloridos, com um cincerro badalando no peito cadavérico. O Barão onceiro, meio giboso, metido num fraque sebento, de cartola furada no cocuruto e enterrada até as monumentais orelhas de asnos, seguia todo imperial, como bom quarteiro de defunto, pela praça da igreja de Nossa Senhora dos Remédios, com um séquito de moleques atrás, sempre gritando:
— Viva o Barão-das-Onças!
E o Barão das carniceiras, instintivamente, metia a mão no alforje pejado de amendoins e os atirava à molecada. De vez em quando um moleque corria à frente e perguntava:
— Aonde vai, senhor Barão-das-Onças?
E ele, num rompante de nobreza, parava a boreta, para responder de peito estufado:
— Vou pro meu curral tirar leite das onças, pra fazer requeijão!
E a molecada, na gargalhada e no assobio, gritava:
— Viva o Barão-das-Onças!
E outro mais afoito atirava-lhe uma canecada de água e entoava :
— Maria, Maria, coisa que dói é água fria!
O Barão das felinas, no seu costumeiro protocolo de nobre, parava a alimária, para responder o insulto :
— Num dá certo a brincadeira, eu me zango e solto as minhas onças!...
E abria-se numa sonora gargalhada. A molecada, eufórica, gritava :
— Viva o Barão-das-Onças!
O entrudo avançava como esporada de abelhas, pelas casas e ruas. E na porta do coronel Verico, os grandes da terra se reuniram em palestras animadas. O juiz, com um par de óculos encavalado no narigão, de bico de gavião, explicava:
— Numa sociedade feudal como a nossa, Coronel, a única igualdade que existe é através da morte, que nivela todo mundo. Não tem rico, pobre, preto ou branco, debaixo do chão passam a ser iguais. O entrudo, por exemplo, é uma explosão de alegria folclórica da nossa gente. Mas não tem nada de igualdade. Cada classe com sua liberdade. Ralé molha ralé, nobre molha nobre, coronel molha coronel.
Nisso uma negrinha, bocejando traços de sapeca, a mando de dona Chinina, a esposa do coronel, entrega-lhe uma caneca cheia de água, numa bandeja de prata. Tudo estava correndo bem, conforme o planejado. O Coronel, todo sério, sem mais nem menos, vira a caneca no juiz e grita:
— Viva a nossa classe! — E lá vai água!
E os serviçais da casa, rapidamente, trazia as bilhas, as pipas, as bacias de água, e a guerra se estabelecia entre os grandes da terra. Não escapava ninguém do banho improvisado. O padre, que acabava de chegar, era molhado pelo capitão Vergueiro, que gritou eufórico:
— Maria, Maria, como dói água fria! — É a minha vingança, seu Vigário!
E ao cair das tardes de todos os dias dos festejos do entrudo, o mestre Raimundo saía tocando sanfona com o povo molhado atrás, sambando e cantando. Manuelão com outros amigos de destaque da vila organizavam o caixão do enterro dos ossos e saíam rua abaixo. Em cada esquina, João Matraca repicava o zabumba, com os gaiteiros. E um folião abria a tampa do caixão, que estava cheio de alimentos, galinhas, bode assado, farofa, beijus, bolos de puba e cachaça.
O povo, que observa a cena espalhafatosa dos foliões, caia na risada. E os foliões, despreocupados, metiam a mão no caixão e comiam com voracidade de famintos. E de vez em quando a água encharcava alguém. E o grito de guerra animava a turba festiva:
- Maria, Maria, como dói água fria!
*Conto extraído do livro VEREDÃO-, do escritor Moura Lima - Editora Cometa-Gurupi-TO