Quarta-feira de cinzas
Como diante de uma tela branca e um pincel sem tinta, me vejo sem nada, sem nenhuma palavra, não há sequer um pensamento formulado que me ajude a escrever sobre os milhões de letrinhas que borbulhavam em minhas ideias minutos atrás.
Eu queria falar sobre a experiência (inédita) de tomar conta da casa de uma amiga, mas sei que esse foco se dissipou. Me pego com o olhar perdido, parado em uma parede, em uma porta, nos cães, nas plantas, e questiono. Reflito sobre o que leva alguém a sentir prazer, da forma mais genuína, em cuidar do alheio quando, na verdade, não dá conta de cuidar da própria casa, dos próprios pertences... Reflito sobre esse paradoxo desde o primeiro dia: domingo de carnaval. Hoje, quarta-feira de cinzas. (Seria esse detalhe o inspirador dessa quase angústia, desse aperto no peito?)
Cinzas. Às vezes, olho o que fiz e penso que andei puxando cinzas para cima de mim, jogando, eu mesma, cinzas sobre minha cabeça, sobre meu corpo. É mais cômodo, mais tranquilinho, conviver com certas situações quando elas estão camufladas, ao nosso lado, na nossa frente, no nosso nariz, mas sob forma de cinzas. Cinzas o pó, algo que se dissolveu. Cinzas no sentido de não reconstituível, irreciclável, perdido e irrecuperável.
Nesse tempo, eu precisava me sentir inteira para viver as opções daqueles momentos e, com isso, equivocadamente (?), eu considerava qualquer outra perspectiva como uma espécie de ameaça, como fantasmas que poderiam abalar as estruturas daquelas escolhas. Fácil: fazia tudo se transformar em cinzas. Fosse meu passado, fosse meu presente, fossem as possibilidades que o futuro pudesse me oferecer.
E hoje, quarta-feira de cinzas, vindo num vôo de reforço, leio um “Pense nisso!” como sugestão de que talvez seja esta a hora da minha virada de jogo. Entendi como se talvez fosse a hora de eu devolver a forma original a tudo que eu vinha adulterando em cinzas.
Se Fênix renasceu delas, eu não quero renascer de nada, pois não morri. Hibernei.
Quero sair do torpor, aonde sei que estou. Sei que posso, que consigo. Quero cuidar melhor do meu reino.
Não posso, e não quero retroceder. Não posso, e não quero cometer novamente o “auto-encinzamento”.
Quero, sim, o que se desintegra, o solúvel, o volátil, mas também o recuperável, o resolúvel, o reciclável.
Quero a flexibilidade, quero a metamorfose ambulante, quero a sociedade alternativa, quero tentar outras vezes. Quero a beleza maluca e insana. Quero o medo da chuva, mas também quero o destemor que impele a enfrentar tempestades, temporais, tufões, furacões, intempéries das mais variadas.
Quero viagens e suas paisagens. Quero flores, suores, calafrios. Quero plantas, animais, carnavais.
Quero amigos, quero amores. Quero a cor, as cores, o arco-íris. Quero me assombrar com esse arco-íris e ver assombro semelhante nos olhos dos meus filhos. Quem sabe assim, ensiná-los a ver encantos fora do óbvio.
Quero mais quartas-feiras de cinzas. E em cada uma delas, quem sabe, ter menos brancos, menos pensamentos dispersantes, mais inspirações, e mais escritas...
(06/02/2008)