A carta que não te escrevi...

Talvez esta carta chegue tarde, quem sabe se não terá mesmo passado tempo demais. Confesso que hesitei muito antes de decidir retornar ao teu contato. Afinal, passado tanto tempo, provavelmente será uma parvoíce da minha parte escrever-te, assim, do nada, como uma voz vinda de outra vida, do além, que há muito havias esquecido. E se calhar, até será mesmo uma parvoíce, este meu ato impensado, e será esse o primeiro pensamento que vai atravessar a tua mente se, num momento de generosidade ou, quem sabe, de curiosidade aguçada, decidires parar um pouco na azáfama da vida, para ouvires, através destas letras que contigo partilho, a minha voz, no exato timbre que guardaste na memória.

Teria tanto para te dizer, um mundo, acredita. Contudo, passado tanto tempo, as palavras parecem não conseguir abarcar, nos seus múltiplos significados, o tanto que haveria a dizer-te: eu sei, parece uma contradição, não é?

À falta de melhor, talvez por termos perdido os temas comuns, caraterísticos das relações daqueles que fazem parte das vivências quotidianas uns dos outros, arrisco partilhar contigo as mudanças que a passagem pelo tempo operou em mim, se para melhor ou para pior, não te sei dizer, um dia alguém contará essa estória.

Lembras-te? Naquele tempo vivia sempre preocupado com o futuro, talvez por força de um passado a que me agrilhoava, voluntariamente, impedindo-me de viver o presente e empurrando-me para querer chegar ao futuro, numa espécie de salto quântico que me permitisse chegar lá, sem passar pelo presente.

Hoje sei que o passado não me define e, assumo com orgulho, que o futuro, ainda, não me pertence. A verdade é que me libertei do passado, guardando as suas lições, e deixei de preocupar-me com essa incógnita que é o futuro, talvez por saber, no meu íntimo, que um dia chegarei a esse lugar que me estará reservado, mas que não pisei ainda.

Aprendi também que ninguém cruza o nosso caminho, ou as nossas vidas, por um acaso qualquer e ainda bem que assim é, afinal essa é a beleza da vida e das relações também. No fundo, não passamos indiferenciadamente nesta caminhada da vida, deixamos sempre um pouco de nós nos outros e levamos sempre um pouco deles em nós, num verdadeiro milagre do universo, que não se consegue explicar, mas que sabemos ser assim.

Enfim, aprendi tanta coisa e muito queria dizer-te, mas a verdade é que me faltam as palavras. Por isso, deixo-te o essencial: a minha gratidão, por tudo, sem exceção, na certeza de aqui cabe, e caberá sempre, um mundo que as palavras não conseguem abarcar, obrigado.

P.S. - Não espero, nem é essa a intenção desta carta, que me respondas na volta do correio, assim como não carrego qualquer expectativa de possibilidade de uma interação entre nós. O nosso tempo passou, parecia eterno na altura, mas foi apenas um sopro que nos fez acreditar, pela sua intensidade, na eternidade, quando, na verdade, esteve sempre condenado à brevidade.

Nuno Santos
Enviado por Nuno Santos em 17/09/2024
Reeditado em 06/10/2024
Código do texto: T8153938
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