Ah, o Amor! III
Durante a campanha presidencial de 2018, muitos de nós sabíamos que se Jair Bolsonaro fosse eleito, os povos da floresta seriam tratados por ele, através das decisões dele, como qualquer outra coisa que não seres humanos. E assim deu-se o resultado: as portas da Amazônia foram abertas para todo tipo de criminosos, pessoas fora da lei e sem nenhum escrúpulo (e aqui refiro-me não só aos empregados, aos contratados por gente de grande poderio econômico, mas também aos próprios contratantes). As instituições que antes mantinham alguma fiscalização e controle, visando a proteção dos povos e dos recursos ali localizados, foram claramente orientadas a não se importarem mais. Os tratores que, antes, seriam destruídos passaram a ser protegidos, as multas foram proibidas, madeireiros e garimpeiros ilegais, e até grileiros, passaram a circular como se fossem donos das terras, das árvores, dos rios, das riquezas; das mulheres; das meninas. Durante quatro anos, gritos quase diários, denúncias quase diárias foram parte da vida dos legítimos donos da floresta, e também parte das nossas, dos que acompanhamos à distância e com os corações aflitos o envenenamento dos rios, os incêndios criminosos em escolas, postos de acolhimento e casas de oração; o terror espalhado sobre as vacinas (bem como desvios das mesmas para terceiros), o desvio de remédios, os assassinatos, os estupros. Assim também como vimos a resistência na medida do impossível, a luta pela sobrevivência e os movimentos que os povos indígenas, de maneira geral, fizeram pela sua libertação, para terem seus direitos respeitados.
Quatro anos de resistência e luta. Muitos, infelizmente, não tiveram a chance de dar seu voto pela mudança, mas os que puderam fazê-lo certamente o fizeram por todos os outros, inclusive quilombolas e ribeirinhos, e também por nós, distantes do sofrimento dessa gente que é nossa, guardiões da nossa Casa. Não sou porta voz de nenhum deles, mas acompanhei sua voz de esperança através de vídeos, depoimentos, cartas, e ela tantas vezes manteve acesa a minha fé. Não estão findos os temores, as dores, os desafios; apenas a voz a que me referi parece ter finalmente repercutido como aquela que levada ao vento não teve o eco como única resposta.
Essa semana que passou vimos cenas muito tristes, e o descaso que nos levou a elas é revoltante. Por isso, no lugar de deixar aqui tão somente o registro das minhas impressões, deixo a carta escrita por mulheres Yanomami, depois das eleições. É provável que muitos não tenham conhecimento dela, dos relatos e esperanças que ela manifesta.
Comunidade Rokoari, Terra Indígena Yanomami
26 de novembro de 2022
Carta ao Presidente Eleito
Lula, nós mulheres Yanomami queremos enviar nossa palavra até você. Você está muito longe da Terra Indígena Yanomami, mas sabemos que você vai receber nossas palavras e que quer nos escutar. Queremos que você saiba que estamos com medo e muito preocupadas. Hoje a floresta está doente. Quando nossa floresta está doente, todos nós ficamos doentes.
A floresta está cheia de buracos. Tem muitos garimpeiros na nossa terra. Antigamente tinha água limpa, hoje está muito suja, os rios estão amarelos e já faz tempo que está assim. Estamos com muito medo do que pode acontecer, pois nossa terra está ruim. A nossa roça não está crescendo bem. Nossas crianças já estão sofrendo os impactos do que está acontecendo agora.
Lula, os olhos dos peixes estão mudando. Parecem que os olhos estão soltos e até os animais estão diferentes, parecem magros e doentes. Estamos com medo de comer os peixes doentes. Estamos com medo de que nossas crianças fiquem deficientes.
Os rastros de garimpeiros fazem crescer a malária. Antes, quando não tinha tantos garimpeiros, as doenças eram poucas. Em algumas regiões do território Yanomami, nossas crianças estão morrendo por malária, desnutrição, pneumonia e até por infestação de vermes.
Quando o garimpo está próximo, nós mulheres ficamos muito preocupadas e andamos com muito medo. Os garimpeiros nos ameaçam e nós não queremos viver assim, queremos viver em paz. Garimpeiros assediam as meninas e outros querem pagar serviços maritais. Eles querem fazer assim, mas nós mulheres não queremos que nossas filhas e netas sejam entregues e abusadas por essas pessoas. Os garimpeiros aliciam os jovens e suas esposas. Esses jovens são atraídos e ficam dependentes dos poucos alimentos industrializados que recebem como pagamento.
O atendimento à saúde Yanomami não está funcionamento bem. A presença do garimpo causa conflitos que leva à retirada das equipes de saúde de área. Há hoje muitos postos de saúde na Terra Indígena Yanomami que estão fechados. Há milhares de Yanomami que estão sem nenhum atendimento à saúde. Naqueles postos que ainda estão funcionando, não há medicamentos, falta bote e motor. As equipes não têm como fazer o atendimento básico e muitas comunidades não recebem visitas das equipes de saúde.
Estamos vivendo um verdadeiro caos sanitário. Quando vamos ao posto de saúde, os funcionários nos dizem: “não há remédios, não há nada que possamos fazer, nós pedimos os remédios, mas eles não chegam”. Tem muitos casos de malária, os casos de malária explodiram em todo território, essa malária é muito forte e não tem medicamentos para trata-la. O governo de Bolsonaro acabou com estoque de cloroquina do Brasil e agora nós sofremos pela sua má gestão. Não queremos ficar chorando porque as pessoas morrem, não queremos ficar chorando até a madrugada.Já temos muitas cinzas mortuárias.
Muitas escolas que tinha na nossa terra foram fechadas e não funcionam mais. As crianças e os jovens não estão estudando. Estamos pensando nos nossos filhos que precisam aprender a ler e escrever. Se não tem escola, não ficamos bem, não conseguimos acompanhar nem proteger nossos direitos.
A Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) não está funcionando bem, as crianças saem para o Hospital da Criança e quando voltam para CASAI ficam doentes novamente. Voltam com outras doenças, até pegam malária lá. Quando estamos doentes somos transferidos para tratamento de saúde na cidade e ficamos por muitos meses lá e em condições muito ruins. Lá demoram muito para nos dar alta, não facilitam o nosso retorno para comunidade e acabamos ficando doentes novamente. A CASAI está muito suja, tem esgoto que corre a céu aberto. Por isso nós Yanomami não saramos e ficamos doentes reincidentemente.
Lula, estamos felizes de saber que você vai ser nosso presidente, que vai saber nos escutar e contar com nossa participação no seu governo. Agora que você foi eleito novamente nós mulheres yanomami vamos te dizer o que queremos.
Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que lá vivem. Queremos continuar vivendo na nossa terra, comer alimentação saudável e beber água limpa.
Tire os que estão invadindo a Terra Yanomami. Faça as operações para tirar os garimpeiros e suas maquinas. As poucas operações só retiram as pessoas e deixam as máquinas na floresta, isso facilita que os invasores retornem e reativem aqueles locais de exploração. Tem que fechar o caminho de entrada deles. Tem que fiscalizar os caminhos, bloquear os rios e pistas de pouso que eles usam para chegar até a nossa terra. Tem que fazer cumprir a lei. Nossa terra é demarcada e o garimpo nas Terras Indígenas é ilegal.
Coloque na Sesai e no DSEIY pessoas que tenham compromisso com nosso povo, que conhecem os problemas e que sejam profissionais de saúde para saber cuidar bem da saúde dos Yanomami, que visitem as comunidades que não tem posto. Os medicamentos estão faltando. Estes precisam ser entregues urgentemente. Tem que fazer uma nova CASAI com condições de nos atender dignamente. As pessoas que estão à frente da saúde atualmente são indicações políticas, não conhecem a saúde indígena, não se preocupam conosco e por isso estamos sofrendo. O coordenador do DSEI deve ser uma pessoa capacitada tecnicamente e sensível à realidade Yanomami.
Queremos que nossos jovens possam estudar na nossa terra e na nossa língua. Por isso, queremos escola indígena no nosso território e formação de qualidade para professores indígenas e agentes indígenas de saúde (AIS).
Nós queremos viver segundo os nossos próprios projetos.
Nós queremos poder acompanhar os cuidados do nosso território. Nossos projetos não causam destruição e respeitam o nosso conhecimento da floresta. Nós fizemos o nosso Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), e queremos que você apoie na implementação. Temos nossas regras e protocolo de consulta e queremos que você respeite e faça ser respeitado.
Estamos muitos felizes que você foi eleito.
Nós mulheres Yanomami confiamos que você trabalhará para que nossas crianças vivam com saúde na nossa terra-floresta.
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"Quando a vida agoniza nas florestas, o amor agoniza, meu amor."