Carta para Débora II
terça-feira, 18 mai 2021 02:39 PM
Querida Débora,
Sei que você deve ter ficado se perguntando por que / para quê eu bebia. Peço desculpas por interromper a carta anterior daquele jeito. Eu achei que teria forças para manter distância e manter você longe de tudo isso. Mas eu sou uma boba, carente e me importo muito com sua amizade e nossa união e com o julgamento que você faz de mim.
Bebia porque tinha a sensação de que ficava mais sociável, relaxada, espontânea. Conversava mais, tinha mais senso de humor e achava que todo mundo ao meu redor ficava mais agradável ou pelo menos tolerável. Inclusive eu.
Eu tinha a impressão de que a bebida diminuía a minha irritação e a minha fadiga.
Quando estava sozinha, gostava de beber para diminuir o tédio, para amenizar a chatice de atividades rotineiras como fazer faxina ou organizar o armário ou para me ajudar a descansar após um dia exaustivo de trabalho. Também bebia para me animar/alegrar . Mesmo para dar aquele "UP" , aquela coragem pra fazer alguma coisa , como uma dose de café. As vezes a bebida era energético. Poucas vezes era sonífero. Muitas vezes era lubrificante social.
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Eu bebia também porque achava que ingerir bebidas tinha um quê sofisticação. Era "très chique" uma bela taça com um drink colorido e sabor exótico ou uma foto no feed de um livro e uma taça de vinho. Também parecia bem legal e inseparável o "combo" céu azul , manhã de domingo e cerveja gelada. Eu sempre fui visual. E gostava de me dar esses mimos. Preparar um cozumel e fazer um boomerang pra postar nos stories às vezes era o auge do meu dia. (que horror! Mas é verdade)
O problema nem está em nada disso que eu falei até aí.
O problema é que eu nunca tomava um só drink, uma só taça, um só cozumel...
Eu continuava bebendo.
E bebendo.
E bebendo.
E quando acabava eu queria mais.
E se tivesse dinheiro eu comprava: parava na loja de conveniência do posto de gasolina ou no bar surrado no meio do caminho pra mais uma longneck sem glamour nenhum só pra continuar bebendo.
O frenesi de continuar entornando e entornando era constante. E foi ficando mais recorrente.
Essa é a parte da compulsão propriamente dita, eu acho.
Continuar bebendo quando o efeito do álcool já deixou de ser agradável até pra mim mesma, imagina pra quem está perto observando...
Eu achava que estava mais sociável, mais relaxada, mais leve, engraçada, conversando melhor. Mas a muito custo e depois de um bom tempo comecei a perceber que eu me tornava alguém desagradável - como todo bêbado que se preza ou talvez mais do que o normal. Sempre me importei com a opinião alheia, os outros são um termômetro pra mim. E saber que poderia estar sendo julgada sempre me incomoda. Não seria diferente com a bebida. Por isso remoer meus comportamentos no dia seguinte às bebedeiras sempre foram um martírio.
Somado a isso, lembrar da minha infância e adolescência ruim , das alfinetadas da minha mãe e imaginar que eu fazia igual sempre me deixavam na bad. Mesmo assim isso não era motivo suficiente para decidir me afastar da bebida. Eu sabia que tinha um problema, mas não queria abrir mão de beber.
É bem complicado porque a bebida está em todo lugar, é bem aceita socialmente, dá prazer (até certo ponto), vende em toda esquina, é bonita no Instagram... Enfim... Estou sendo redundante.
Algumas vezes, várias vezes, tracei metas atenuantes como beber só em festas e datas comemorativas ou não beber cerveja e sim vinho ou beber uma única vez por mês...' Nunca tive sucesso. Eram formas de tentar me enganar e fingir que eu tinha algum controle.
Só recentemente eu fui capaz de dar um passo realmente efetivo e decidir parar de beber. Talvez porque as coisas foram ficando piores durante a pandemia e eu me vi cada vez mais bebendo sozinha em casa, sem motivo nenhum além do tédio e da solidão. Sem nenhum evento ou motivo. Bebendo só pra fazer o almoço, a faxina ou pra ler um livro - tudo isso me remetia muito à minha mãe , principalmente porque agora eu sou uma referência materna para o C. E eu definitivamente não queria reproduzir essa mesma vibe. Não queria copos povoando todas as memórias do primeiro setênio dele. Somado a isso talvez os apagões que eu comecei a ter nos últimos porres certamente influenciaram porque eu ficava péssima em não lembrar o que tinha feito ou dito e isso me gerava paranóias horrorosas porque eu criava os piores cenários. Acredito que um dos meus medicamentos tenha a ver com isso... Ele mexe com o cognitivo e memória e associado ao álcool mais ainda. O que sei é que um possível efeito colateral também foi um agente motivador. E o próprio efeito positivo do moderador de humor (obrigada @deus por isso. Não esquecer de acender uma vela hoje a noite nessa intenção 🤣🙏) é me ajudar com as compulsões - meu psiquiatra quem disse. É verdade (mesmo) esse bilhete.
Então tudo isso me trouxe até aqui: esse momento em que me encontro.
46 dias, um recorde real, sem beber.
Não posso dizer que não sinto vontade ou falta de beber. Ou que não gostaria de não ser alcoólatra só pra poder beber como todo mundo. Às vezes dá uma peninha de mim mesma. Mas o que posso fazer ?!
Estou fazendo o que posso, bolando minhas estratégias por aqui. Baixei um app para participar de reuniões, leio algumas coisas sobre o assunto, converso com algumas pessoas que tem o mesmo problema e ando aprendendo a preparar bonitos drinks não alcoólicos - principalmente a base de café gelado. Tem vezes que eu engano meu cérebro com suco de uva integral na taça de frente pro livro ou um copo gigante de água com gelo e limão pra simular uma caipirinha... Normalmente funciona super bem.
Mas as vezes eu sinto falta do efeito anestesiador.
Esses são os piores dias.
No último domingo eu queria muito beber , não pelo sabor ou pelo copo bonito. Eu estava louca pra beber pelo efeito. Queria muito sair de mim , não sei por qual motivo. Era o dia em que se eu tivesse maconha em casa com certeza teria fumado. Mas não tinha. Há 15 dias não tenho. Decidi não comprar mais porque quero evitar de trocar um vício por outro. Não queria ser dependente de substâncias para lidar com a realidade - já bastam os remédios . No entanto, fico me perguntando, como algumas pessoas conseguem viver assim: sempre de cara limpa. Como é possível que algumas consigam?
Sem nada que as tire do olho do furacão?
Quando eu li admirável mundo novo, a ilha, 1964 e laranja mecânica ficou tão claro pra mim que até nos mundos distópicos é necessário algum tipo de entorpecente pra manter a humanidade, digamos, mais relaxada. Kkk
Sei que algumas pessoas encontram na religião, esporte e etc sua "fuga". Mas eu já fiz dieta, esporte e já fui mega devota e mesmo assim precisava comer muito e beber álcool. Kkkkkkkkkk
Não sei qual o meu problema. Não sei se todo mundo é assim e eu que não percebo e me cobro demais ou se realmente sou a doida dependente de tantas coisas... E pessoas. Não sei.
O que observo é que muita gente vive parecido com o que eu vivo e não demonstra incômodo algum e eu fico problematizando e questionando tudo isso.
A conclusão a que eu chego é que O que eu queria de verdade não era deixar de beber , era beber de forma "normal". Mas eu sei que não consigo mais, não tenho essa capacidade.
E por mim , pelo meu tratamento, pela minha saúde mental e pelo C. eu não posso mais beber. Estou ciente disso. Por mais peninha que eu sinta de mim mesma por isso.
Também sei que preciso aprender a comer direito, feito as pessoas comem. Sem me adoecer, sem me culpar e sem ficar com a sensação de que vou explodir depois.
Da mesma forma, sei que preciso tomar cuidado com outras substâncias para não ficar dependente delas no futuro. Por isso faço uso cuidadoso (e medroso) da maconha e só uso os medicamentos psiquiátricos de acordo com a orientação do médico, resistindo muuuuito à vontade de tomar os tarjas pretas que eu tanto já tomei antes em momentos de crise de ansiedade e hoje, mesmo tendo em casa, não tomo mais porque sei que a longo prazo vai me trazer mais prejuízo do que benefício...
E é assim que eu sigo buscando as melhorias de que preciso para me sentir melhor. As vezes me sinto péssima. Mas ultimamente não sinto mais que estou andando em círculos e isso já é algum avanço.
Obrigada por me fazer companhia e por ouvir todo o meu relato e exercitando a compaixão e a empatia. Você é minha melhor amiga.
Com amor, Bibi.